quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Cap. 15 – Islands in the stream

No dia seguinte, tinha várias coisas pra resolver. Antes tive que passar na casa da Elsa e do Julio (só lá servia café-da-manhã). Como desgraça pouca é bobagem (pra ela!), encontrei a Mary, uma guia turística canadense, muito amiga do Leonid e que havia mergulhado conosco durante vários dias em Trinidad. Pura coincidência. E o pior é que ela parecia ser amiga da Elsa.

Estava toda eufórica em me re-encontrar, por acaso. A Elsa, que já estava incomodada com minha presença, ficou mais ainda quando viu a amizade toda-toda da sua amiga com o hóspede que ela havia botado numa fria... Enfim, depois do café-da-manhã, eles me deram um recibo de próprio punho (alegando que não poderiam quebrar a ordem cronológica do recibo oficial), que não ia servir pra nada.

Não havia nada o que fazer com o casal problema. Quando eu falei com o Enrique pelo telefone, dois dias antes, ele me tranquilizou dizendo que os maiores prejudicados seriam eles (Elsa e Julio) caso houvesse algum problema comigo.

Logo cedo, queria passar no Museu Yorubá para agradecer, mais uma vez, a Maria pelo ritual de Santería que ela me levou. Aproveitei e deixei com ela alguns presentes: leite em pó, doce de leite em lata, capuccino e quase tudo de produto alimentício que sobrou da cesta básica que eu havia levado pra Cuba. Depois passei num galpão onde funcionava um centro de vendas de artesanatos. Aproveitei para comprar uns souvenires pra família e pros amigos. Passei também numa livraria para comprar um livro,  que é a “bíblia” da Santería (é um livro acadêmico, bem completo). O Rafael queria porque queria me dar o dele, mas eu neguei. Pra mim era fácil comprar um exemplar, pra ele devia custar um salário inteiro (12 CUC). Aproveitei e comprei o Granma para me inteirar da imprensa cubana. Mais do mesmo...

Maria y Johnny na Babilônia

Depois fiz uma longa caminhada (uns 15 km) até Regla (tive que pegar balsa e tudo mais), uma cidade ao lado de Havana. Trata-se da parte não-turística. Ninguém vai lá. Gosto destes lugares pois geralmente existem coisas bastante interessantes que não estão nos guias de viagem.

De fato, era o centro religioso de Santería em Cuba. Várias pessoas andando de branco, casas decoradas com artefatos religiosos, uma igreja dedicada à Nossa Senhora de Regla, padroeira dos navegantes e fortemente sincretizada com Iemanjá.

Fui até uma estátua do Lênin, almocei num restaurante em moneda nacional, peguei a balsa de volta, caminhei por toda Habana Vieja. Depois peguei a mochila, me despedi do Miguelito “El tocador” e fui encontrar o Enrique na empresa dele. De lá fomos para a casa dele em Playa.

No caminho ele me explicou que havia um jeito de “arrumar” minha situação na Imigração. Custaria algumas dezenas de CUC's, mas a mulher poderia arrumar no sistema e, na saída, teria que passar por ela no controle de Imigração. Sinal verde dado para a operação. Chegando em casa, ele ligaria pro amigo.

Aproveitei o trajeto pra tirar todas as minhas dúvidas restantes sobre Cuba. Perguntei desde onde vive Elián Gonzáles (kkkk) até o sistema de propriedade privada em Cuba. De fato, não há propriedade privada. A casa que eles moram, por exemplo, assim como todas as outras, são do Estado. Eles podem morar lá pra sempre, mas não podem vender a casa.

Quanto aos carros o que ocorre é o seguinte: os carros pertencem todos ao Estado. Os que não estão à disposição das atividades burocráticas, administrativas, ou seja, na prática são carros particulares (como o do vizinho, que o Roly “alugou” para ir me buscar no aeroporto) eram destinados às atividades governamentais e, em algum momento (uma renovação da frota, por exemplo), passaram às mãos daqueles que os utilizavam.

Exemplo: digamos que o Enrique, como engenheiro elétrico e funcionário da empresa estatal de desenvolvimento de energia, tenha à sua disposição um carro para trabalhar. A empresa resolve renovar a frota e “dá” o carro velho pro Enrique. Ele fica com o carro pra uso particular, mas não pode vendê-lo, nem alugá-lo. Por isso eu não consegui alugar a motoca nem os carros velhos...

Outra dúvida que eu tinha era sobre a reforma administrativa do Estado Cubano, que como temos lido recentemente nos jornais, o governo cubano pretende demitir 1,5 milhão de pessoas. Enrique confirmou isso, mas não se dizia preocupado, pois na sua área falta gente. Disse que na maioria das outras áreas havia um inchaço de pessoas que não faziam nada, não produziam nada. O Estado resolveu demitir essas pessoas.

Outra mudança que já está começando a ocorrer é a liberação de profissões liberais. A sua mãe, cabelereira, logo mais vai poder (e ter que) exercer sua atividade de forma liberal, sem que o Estado fique com o dinheiro por ela recebido, nem tampouco tenha que lhe pagar um salário fixo, independente da produção dela (que hoje pode ser de 0 ou 100).

Antes de chegar em casa, Enrique teve que parar um orelhão pra ligar pra sua “amiga do chocolate”. Hehehehe. Depois passamos na casa do amigo dele, enrolador de charutos da fábrica do Cohiba, pra pegar a minha encomenda. Hehehehehe

Conversei bastante com o Roly também sobre o sistema da libreta. Esta é uma cadernetinha que todo cubano tem, que lhe dá direito a um mínimo de coisas para sobrevivência. O Estado dá, pra todos os cubanos, arroz, feijão, frango, óleo, ovos, leite, etc.

Se uma pessoa não faz nada na vida, não morrerá de fome. Entretanto, o que vem na libreta não é suficiente. Daria, mal comparando, para apenas fazer uma refeição por dia. O resto as pessoas têm que correr atrás... E cada vez mais o Estado tem tirado coisas da libreta. Já tiraram cigarros e agora os produtos de higiene pessoal como sabonete, pasta de dente, etc.

O problema é que, tudo que não está na libreta é considerado “superfluo” e, por isso, só se encontra em CUC...

Fomos na casa da Mari (mãe do Enrique) me despedir dela. Fiquei sabendo que La Favorita tinha acabado no dia anterior! Hehehehe. Depois do jantar, fomos pro aeroporto buscar um alemão (Stephan) que chegaria naquela noite. Ele também era amigo do Enrique via Couchsurfing.

No caminho, pra encerrar a viagem com chave de ouro, fomos interceptados pela guarda presidencial do RAÚL CASTRO!!! Ela nos mandou parar do lado direito enquanto a comitiva com “o nosso presidente” (como diria a Yení) passou ao nosso lado!

Lembrem-se que ele e o Fidel moram pertinho da casa do Enrique, conforme já havia falado no começo deste relato!

Fiquei conversando com o Stephan até duas da manhã. Um alemão gente fina. O Enrique foi dormir cedo pois no dia seguinte teria que viajar, A TRABALHO, pra Matanzas, onde ficaria até domingo...
Trabalhar no final de semana... em Matanzas.... sei.... haja chocolate....

Enfim, pra finalizar minha viagem, seguem algumas pequenas considerações sobre Cuba:

Trata-se, sem dúvida, de um país bonito, com lindas praias, povo amável, gentil, educado. Não vi, nenhuma vez, qualquer mendigo na rua ou mesmo pessoas passando fome. É o mínimo que se espera de um país socialista... Todo mundo em Cuba tem dignidade. Isso é louvável. O grau de educação das pessoas me surpreendeu. O país dá muita atenção à educação e à saúde, além de condições mínimas de existência.

Todavia, falta liberdade. A censura é visível nos programas de TV (que só veiculam documentários do Michael Moore e programas educativos). Por mais que a nossa programação de TV aberta seja, literalmente, um LIXO, creio que qualquer tipo de tentativa de regulação deve ser prontamente rechaçada!

Se existe Datena, É o Tchan, BBB ou coisas do gênero é, porque, tem gente que assiste e gosta! As pessoas devem ter liberdade pra assistir o que quiser. O Estado deve prover programas de qualidade, educativos (como a TV Cultura por exemplo), mas escolher entre Ana Maria Braga e um documentário da TV Cultura tem de ser uma decisão exclusiva e soberana de cada um! Quem quiser ser burro, que seja. Quem quiser ser inteligente, que seja. E cada um na sua.

Também acredito que o modelo cubano (assim como todo modelo socialista) é falido. Volto ao ponto que tratei no começo. A premissa está errada. Os seres humanos não são iguais. Não se pode nivelá-los (e por baixo, pior ainda). É inadmissível que o Enrique ganhe o mesmo que um lixeiro, ainda que os trabalhos sejam igualmente dignos e necessários...

A prova de que o modelo já faliu foi a solução para a sair do “período especial”. Abriu-se o país ao turismo, ao capitalismo. O que aconteceu? A criação de duas moedas literalmente CRIOU AS CLASSES SOCIAIS EM CUBA, que são duas: os que tem CUC e os que tem só moneda nacional... Já possível perceber nitidamente isso. Em Playa, por exemplo, só existem casas gigantes, condomínios fechados e carros importados. Todos de pessoas ligadas ao turismo ou ao ramos de importações.

Quando isso aconteceu, acabou tudo. Não tem mais volta... Todas as reformas implementadas por Raúl só incentivarão a criação de uma economia de mercado, do destacamento dos mais capacitados, da iniciativa privada e, tomara, de uma liberdade de expressão.


Enfim, temos muito que aprender com Cuba na questão social. Educação, saúde e dignidade devem ser providas pelo Estado, sim. Por outro lado, eles também têm muito a aprender conosco quando o assunto é liberdade, democracia e respeito aos outros direitos fundamentais, além do da igualdade.

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