quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Cap. 4 – Duas moedas, duas medidas

A combinação de gastrite e jet lag (são três horas a menos em Cuba) me fizeram acordar de vez às 5 da manhã. Fiquei contando carneirinhos até o pessoal levantar. O café da manhã foi leite com chocolate, pão (gostoso) e presunto frito. O Enrique deu um gato no trabalho pra poder resolver um problema pessoal e me acompanhar no primeiro dia de Cuba.

No caminho ele foi me explicando um pouco sobre a vida lá. Praticamente todo mundo trabalha pro Estado. Ele, por exemplo, é engenheiro elétrico e trabalha numa espécie de empresa pública para projetos de eletricidade e meio ambiente. O salário: 15 dólares por mês...

Enfim, todo mundo em Cuba faz rolo pra poder sobreviver. O Enrique, por exemplo, tem uma espécie de agência de viagens virtual (Cuba Enjoy). As pessoas o contactam e ele ajuda na reserva de hotéis, casas particulares (espécie de pousadas cubanas), aluguel de carros, cobrando uma comissão por isso. Nesse dia, ele tinha que encontrar uma argentina para a qual ele tinha montado um pacote. Disse no trabalho que tinha consulta médica e tirou o dia de folga.

Nesse dia, aprendi na prática, o sistema de duas moedas nacionais existentes em Cuba. Lá existem o peso cubano, com o qual são feitas a maioria das transações cubanas, pagos os salários, etc. Mas tem também o peso conversível (CUC), criado quando o país se abriu para o turismo (década de 90) e usado para transações com turistas. Sim, há uma discriminação entre cubanos e turistas, pois 1 CUC equivale a 25 pesos cubanos (ou moneda nacional)! Tudo que é relativo ao turismo (diárias em hotéis e casas particulares, táxis, ônibus intermunicipais, a maioria dos restaurantes, souvernires, etc.) são cobrados em CUC! E para efeitos de comparação, 1 Euro equivale a 1,18 CUC. Já 1 CUC equivale a 0,88 dólar. Além, o dólar tem uma sobretaxa de 20% da conversão cambial. Coisas da peleja Cuba vs. EUA.

Essa discriminação entre CUC e Moneda Nacional (Peso Cubano) acabou por gerar uma indústria paralela do turismo, pois tudo que é considerado superfluo na economia cubana é cobrado em CUC. Exemplos: carne bovina (que não consta na libreta) é cobrado em CUC, existem supermecados que só vendem em CUC, neles pode se comprar artigos importados, desde sabonetes e pasta dentais, até tênis e aparelhos eletrônicos. Falarei mais sobre isto e sobre a libreta no decorrer da viagem.

Encontramos a argentina no Hotel Habana Libre. Trata-se do antigo Hilton Palace na época de “ouro”. Com a Revolução, o hotel foi nacionalizado e lá instalado o primeiro gabinete presidencial do Fidel Castro, donde ele governou nos primeiros meses da Revolução. Por isso a escolha do novo nome.

Este Hotel fica no bairro chamado Vedado, que é uma espécie de centro comercial/empresarial de Havana. Prédios altos, hotéis, avenidas largas. Não tem muito a ver com a Cuba de verdade.

Depois comemos uma pizza na rua e fomos caminhando até a Plaza de la Revolución. No caminho passamos por um out-door com uma pintura de um avião da Cubana (empresa aérea estatal) caindo no mar e uma frase “Exigimos Justicia – 34° Aniversário”. Perguntei ao Enrique e ele me contou a história: em 1976 um avião da Cubana, trazendo de volta a equipe cubana campeã olímpica de esgrima, explodiu e caiu no mar do caribe matando todos os 176 passageiros. Ficou comprovado que foi um ataque terrorista planejado por um tal “Posada Carriles” que, coincidentemente, encontra-se preso nos EUA e está sendo julgado por lá neste momento. Este assunto é o hit do momento em Cuba. Na televisão e nos jormais só dava isso. O cara é acusado de diversos ataques terroristas em Cuba e na Venezuela, mas os EUA negam-se a extraditá-lo e o estão julgado somente por entrada ilegal naquele país.

A Plaza de la Revolución é o quartel-general do governo cubano. Rodeando o Monumento a José Martí (o grande herói nacional) estão os ministérios, a sede do Comitê Central del Partido Comunista Cubano, etc. Na praça também são realizados as grandes paradas cívicas e comemorações nacionais. É lá que o Fidel Castro pronuncia seus discurssos intermináveis. Também foi lá que o Papa João Paulo II rezou uma missa em 1998 para mais de um milhão de pessoas. Subindo ao topo do Monumento a José Martí têm-se uma ampla e bonita visão de toda Havana.

Voltamos à tarde para casa do Enrique. Em verdade, ele não mora em Havana, mas sim num município ao lado (colado, como numa região metropolitana) chamado Playa. É nesse município que estão localizados as embaixadas e as casas dos ricões cubanos e estrangeiros (em geral, pessoas que trabalham no setor de turismo ou possuem alguma empresa de importação/exportação). Ali perto, também, mora o Fidel Castro e o Raúl Castro, numa espécie de condomínio de segurança máxima. Playa é como se fosse uma Alphaville de São Paulo, sacou?

Mas como toda Alphaville tem uma Carapicuíba no caminho, é mais ou menos ali que o Enrique mora (kkkk), num bairro de Playa chamado Santa Fé... Apesar dos pesares, a casa dele fica a 200 metros da praia e nesse dia tomei meu primeiro banho de mar no Caribe. Enrique não quis entrar. Disse que a água estava muito fria. Pra mim tava normal, temperatura de água de praia no Brasil. Ele disse que no verão (lá é inverno nessa época) a água fica bem quente.

Depois passamos na casa de uma vizinha pra comprar um frango (esqueci de perguntar se ela cria ou desvia do frigorífico do Estado, pois lá todo mundo desvia alguma coisa do governo...) pro jantar. Quando chegamos em casa, Yení já tinha devorado o vidro inteiro de Doce de Leite Havana!!!!

Roly preparou o frango ensopado e ficou uma diliça!!! Após o jantar fomos na casa da mãe do Enrique assistir La Favorita. Ela estava cortando o cabelo de um cara (é “peluqueira”, como se diz em espanhol). Perguntei ao Enrique como funciona isso (trabalhar por conta própria) e ele me explicou que, na verdade, não é por conta própria. Ela trabalha mas tem que entregar todo o dinheiro ao Estado (que controla a produção pela quantidade de produtos que ela utilizou, já que o Estado também fornece todo o material de trabalho – shampoo, cremes, tesoura, máquina, etc.), em troca de um salário fixo por mês. Típico de um Estado Socialista. Incentivo zero à produtividade. Se a mãe do Enrique cortasse 100 cabelos num mês ou nenhum, ganharia o mesmo salário. Sobre isso ainda conversaria muito com o Enrique no decorrer da viagem...



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