quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Cap. 5 – Odoiá, Iemanjá, Salve a Rainha do Mar!

Acordei meio quebrado. Primeiro porque o colchão é afundado no meio, dando da sensação de que dormi numa rede. Depois porque antes de dormir deixei um papel cair no chão e quando me abaixei pra pegá-lo percebi que a cama estava apoiada sobre dois pés literalmente comidos pelo tempo. Na prática, apenas os outros dois pés da cama (inteiros) a seguravam. Como eu me mexo demais durante o sono, toda hora acordava com a sensação de que tinha quebrado a cama! Kkkkkkk

Aproveitei e acordei bem cedo (6:20hs) pra acompanhar o Kike (como todo mundo chama o Enrique na família) até Havana. Isso porque no dia anterior eu não tinha prestado atenção direito e não decorei os ônibus que eu tenho que pegar e em quais paradas tomá-los e em quais descer.

São dois ônibus (que lá eles chamam de “guagua” – pronúncia /guáguá/ com o “g” praticamente mudo): de um ponto perto da casa do Enrique devia tomar o 420 ou 191 até a entrada de Playa, que ficava numa grande rotatória. De lá, eu devia pegar o P1 ou o P4 até Havana. O trajeto demora uns 40 minutos e os ônibus são extremamente lotados!!!

Saímos de casa às 7 horas, entramos num ônibus igualzinho às “zebrinhas” de Brasília, que estava parado no ponto. Perguntei a razão do Enrique não ter pago as passagens e ele me disse que aquele era o ônibus da empresa!

Tião já ficou puto:

“Caráleo! Porra Johnny, você me acorda as 6 da matina pra entrarmos num busão que vai direto pra empresa do cara. Não vamos aprender nada hoje!”

De fato, não adiantou nada... e, pra completar, o ônibus apagou no meio do caminho!!!!

Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Todo mundo teve que descer pra empurrar! Uma cena hilária!


Zebrinha no prego...


Ressucitada a zebrinha Tião pôs-se a perguntar ao Enrique como ele fazia pra alugar um carro velho ou uma motoca pra viajar pelo interior. Nossa idéia era pegar um Cadilac rabo-de-peixe anos 40-50 ou uma motoca com banco lateral (está cheia delas em Cuba) e dar uma viajada.

Enrique nos broxou dizendo ser praticamente impossível. É que os carros a serem alugados são apenas os novos. Os antigos disponíveis já vêm com o motorista (deve ser porque quebram toda hora, então o mecânico vai a tira-colo). A motoca não se aluga...

Como “no” em Cuba quer sempre dizer “talvez” ou, “quanto você pode pagar”, insisti na idéia de alugar uma motoca de um particular. Ele nos broxou mais uma vez dizendo não haver autorização do Estado para isso. Se a polícia nos pegasse numa blitze, o dono da motoca ou do carro velho iria ter sérios problemas.

“Mira, Tião, lo que no es permitido, es proibido, compreendes?”

“No sé, Enrique... Creo que depende del abogado que tu tengas...”

Enrique se acabou de rir...

Chegamos na empresa dele, que fica no final da avenida 23, a duas quadras do malecón (orla de Havana). Nesse dia caminhei muito. Muito. Fácilmente entre 15 a 20 kilômetros. Percorri todo o malecón de Vedado, depois percorri toda a avenida 23 até o malecón novamente. Voltando ao ponto inicial, virei pro sentido contrário e caminhei pelo malecón até Centro Habana, percorri todo o Paseo del Prado, passei pelo Capitólio, tirei umas fotos, rumei pro Bairro Chino (Chinatown), passei pela fábrica de charutos Cohiba (os tours estavam suspensos, devido às férias gerais), almocei num restaurante chinês ótimo (um pratão de camarão por 10 CUC) e, na volta, dei de cara com o Museu Yorubá.

Opa opa opa! Pausa para um imenso parêntese.

Um dos motivos do meu plano original de ir à Cuba em julho de 2010 era poder acompanhar meu amigo e professor de antropologia na USP, Vagner, num congresso de Santería Cubana. Minha idéia era aproveitar a oportunidade para, além do turismo, visitar alguns terreiros e cerimônias religiosas. Tive que adiar a viagem mas fiquei com a idéia fixa de arranjar um jeito de conhecer este lado cultural-religioso sozinho.

A Santería é uma religião cubana, trazida junto com os escravos africanos, que nada mais é que o nosso Candomblé brasileiro. Yorubá, ou “Iorubá” é o termo usado para descrever, ao mesmo tempo: a cultura, a língua e o povo da parte oeste da África (atual Nigéria, Benin, Togo e Serra Leoa). Este povo constitui a maioria dos escravos trazidos para a Bahia (Brasil) e pra Cuba (daí a semelhança entre o Candomblé Ketu/Nagô – praticado na Bahia, e a Santería – praticada em Cuba).

Como no Candomblé brasileiro, o ritual da Santería é altamente secreto e transmitido principalmente por via oral. As práticas conhecidas incluem sacrifício animal, dança extática e invocações cantadas aos espíritos. A música do tambor, atabaque e dança são usadas para produzir um estado do transe nos participantes, que podem incorporar um orixá.

Pois ali estava eu, em frente ao Museu Yorubá de Cuba. Obviamente que eu iria entrar! Tião ficou puto e resolveu me aguardar do lado de fora enquanto tomava um sorvete. Comprei o ingresso e entrei no museu. Passei primeiro pela biblioteca, onde comecei a conversar com a bibliotecária. Falei que era brasileiro e estava interessado em conhecer a Santería para analisar as semelhanças e diferenças com o Candomblé brasileiro. A mulher era uma anta, só falava besteira. Não entendia nada. Nem o básico da estrutura das religiões africanas. E o pior, numa empáfia da porra. Crente que era a autoridade no assunto.

Deixei ela falando sozinha e subi pro primeiro andar, onde havia um grande salão com imensas estátuas dos orixás. Lá conheci Maria, a guia do museu. Comecei a conversar com ela e logo criamos uma ótima empatia. Maria, além de conhecer muito do assunto, se mostrou extremamente interessada no Candomblé brasileiro e as similitudes e diferenças com a Santería. Ficamos mais de uma hora andando pelo museu, conversando, analisando as imagens, os avatares do orixás, etc.

Ao final, disse à Maria que eu tinha muita vontade de ir numa cerimônia e perguntei onde eu poderia conhecer alguém que fosse filho(a)-de-santo e que pudesse me convidar pra um ritual de Santería. Maria disse que ela própria era filha-de-santo e que no sábado haveria um ritual na casa de uma afilhada dela, e que eu estava convidado!

Pááááaááá parapapeôôô!!!!!

Me deu o telefone dela e pediu pra eu ligar no dia seguinte à noite pra ela me passar o endereço certinho.
Sai de lá eufórico, encontrei o Tião na esquina e já lancei a idéia:

“Tião, Tião! Você não acredita, meu velho!!! Descolei um ritual de Santería pra gente ir no sábado!!!”

“Como é que é, mermão??? Você só pódi tá di sacanagi!!! Até aqui em Cuba você vem com essa mania de ir pra macumba? Esquece! Sem chance!”

“Porra, Tião! Vumbora, velho! Vai ser massa!!!”

“Nem fudeno!!! Você e suas manias de antropólogo-sociólogo! Sai dessa mermão, sábado é dia de zoar, ir numa festa, bailar com as tchicas, beber mojito, joder!!!!! Era só o que me faltava ir pra macumba num sábado à noite!!!!!!!!!!!!!!!”

Não ia ser fácil convencer o Tião. Fecha o parêntese.

De lá rumamos para o Museu de la Revolución. Um palacete onde funcionava a sede do governo de Fulgêncio Batista (ditador que o Fidel derrubou com a Revolução). Hoje funciona um museu bem bacana. Muitas fotos, armas, trajes, maquetes, desenhos das estratégias militares da guerrilha revolucionária, etc. No pátio do museu encontra-se o Granma (famoso barco no qual Fidel, Che, Raul, Camilo et caterva) embarcaram em 1959 desde o México até Cuba para dar início à Revolução. O barco está dentro de uma imensa redoma de vidro e concreto. Segundo o Lonely Planet, para impedir que os cubanos o roubem para fugir pra Flórida.

Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Saindo de lá peguei um táxi-bike até a empresa do Enrique pois combinei de voltar com ele, no busão da firma! Nele não há lotação e dá pra ir sentado. Quando não quebra... hehehe

Cheguei uns 45 minutos antes do fim do expediente e fiquei sentado na calçada esperando o  tempo passar e apreciando a vida cotidiana cubana. Isso é uma das coisas que eu mais gosto de fazer nas viagens. Sentar num canto e ver a vida passar. A vida cubana se parece como qualquer outra: pessoas saindo do trabalho, crianças voltando da escola, casais de namorados brigando, etc. Mas também tem suas peculiaridades, como o gringo bichona com um jineteiro cubano passeando de mãos dadas.

Explico: com a abertura do país ao turismo, surge uma classe trabalhadora do sexo. Homens e mulheres que se prostituem em busca de dinheiro fácil, dólares, euros e até mesmo o tão sonhado passaporte pra ir embora da ilha, casado com um gringo(a), obviamente. São os chamados jineteiros(as). Fiquei observando um gringo afetado, magrelo, passeando com um cubano bombado, de camiseta regata justinha e sem qualquer tipo de afetação. O macho da história. Cômico e trágico ao mesmo tempo.

Enrique chegou, tomamos a guagua, e fui contando a ele sobre meu dia. Deixei a história do museu e da Santería por último. Comecei o assunto pelas beiradas, ele foi me olhando ressabiado e no final soltei o convite.

O bicho deu um pulo, me olhou com os olhos arregalados!

Já emendei:

“Entonces, vamonos????”

Enrique ficou de pensar...

Tião começou a jogar contra.

Chegamos em casa e o Roly estava acabando de preparar o jantar: arroz, feijão e picadinho de carne (de soja!). Pra quem tinha caminhado 20km, aquilo tava um manjar. Com o rum então...

Logo depois o Roly teve de sair pra o encontro semanal dos combatentes de Gyron! Perguntei o que era aquilo e o mesmo me explicou: ele participou da batalha de Gyron, que nada mais é que a Invasão da Baía dos Porcos! Resumidamente: em 1961, mercenários cubanos, treinados pela CIA e armados pelo governo norte-americano invadiram Cuba na tentativa de derrubar o governo de Fidel Castro. A tentativa foi um desastre por vários fatores: o lugar era pantanoso e inapropriado para o desembarque das tropas; Fidel descobriu o plano e se preparou antecipadamente; na última hora JFK cancelou o apoio militar e logístico do exército americano (segundo várias fontes, a CIA jamais o perdoou por isso, o que custou a vida do presidente...), etc. Enfim, Roly lutou lá quando tinha 21 anos e segundo ele, era o mais velho, pois a sua companhia estava repleta de jovens entre 14 e 16 anos! Mais surpreendente ainda é que descobrir que o Roly já tem mais de 70 anos! O coroa tá enxuto!!

Fiquei me perguntando o que eles tanto discutem, semanalmente, um fato que aconteceu há 50 anos atrás... Enfim, fomos à casa da mãe do Enrique. Mas naquele dia não tinha  La Favorita. Ela só passa às segundas, quartas e sextas, salvo engano. Lá na casa, Enrique contou o fato d’eu ter sido convidado pra um ritual de santería. Um imenso debate começou!

Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Primeiro queriam saber como isso tinha acontecido, como eu que havia recém chegado conheci alguém da Santería e já logo havia sido convidado prum ritual, se eu tinha aceitado o convite, se eu iria, se eu não tinha medo, etc. e tal. Parece minha avó quando descobre que eu vou no Candomblé e passa uma semana na Igreja rezando por minha alma perdida...

Orixás, dai-me paciência.

No es fácil...

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