quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Cap. 6 – La Fiesta Santa

Acordei no dia seguinte depois de uma bela noite de 10 horas de sono. Aproveitei a disposição e fui lavar minha roupa no tanque. Vida de mochileiro não é fácil, não! Lava meia, torce cueca, espreme camiseta. Tomei café-da-manhã e parti para pegar a guagua sozinho pela primeira vez. A disgraça tava mais lotada que a Linha Vermelha quando chega na Praça da Sé às 18:30hs de uma sexta-feira véspera de feriado prolongado. Entrei na lata de sardinha tocando um reggaeton mais brega possível. Na primeira parada fui jogado pra fora, junto aos que desciam, e por pouco não fiquei de fora mesmo...

Caminhei por toda Habana Vieja, que era o último da Havana turística que eu não conhecia. Almocei num restaurante bom chamado “La Mulata”. Comi frango e arroz mouro (um arroz com feijão preto). Nesse dia comprei logo cedo a edição do Granma, aproveitei e li durante o almoço.

O Granma é o jornal oficial do governo cubano (é praticamente o único jornal de Cuba. Existe também o “Juventud Rebelde”, que é praticamente uma cópia, com mais ênfase em esportes, etc. Todos são editados pelo governo e quase todos os dias contém um editorial imenso do Fidel Castro.

O editorial do dia tinha o título “Qué diría Einstein?”, onde Fidel aproveitava a notícia de prisão de um espião israelense no Irã pra detornar os EUA, Israel, defender Julian Assange, etc. e tal. Todos os editoriais do Fidel terminam com a assinatura dele, a data e hora de conclusão. Aquele tinha sido finalizado em “Enero, 6. 8:16 PM”.

Tião aproveitou o almoço e tomou váários mojitos. Tropeçando saiu em busca de um lugar com internet pra mandar um “salve” pro papai e pra mamãe.

Internet em Cuba é coisa raríssima. Só existem em alguns poucos hotéis, é caríssima (em geral 7-8 dólares a hora), mais lenta que a conexão discada da década de 90, e sempre com fila. Ótimo. Era disso mesmo que eu estava precisando. Paz de espírito. Não levei meu celular e não tinha internet. Desliguei totalmente da vida mundana brasileira.

Fui caminhando até Vedado (uns bons 5 km) para encontrar o Enrique e voltar no busão da firma dele, certo mano? Ele desceu uns 3 pontos antes da casa, pois iria encontrar “un tipo” que destrava celular. Cuba e seus rolos.

Aproveitei e passei no supermecado. Comprei suco, macarrão e salsicha pra ajudar na janta. Cheguei em casa e o Roly já foi logo perguntando:

“Usted ha sido invitado a una fiesta santa???”

“Si...”

“Y vas???????”

Ô mô pai.... lascou-se...agora é o pai com o interrogatório!!

Enquanto o jantar não ficava pronto fui recolher minha roupa. De fato, a soma de minhas habilidades de dono-de-casa, somada à precariedade do tanque, produziram um festival de limpeza impressionante. Vejamos: numa camiseta preta havia uma imensa mancha branca embaixo dos braços. Sinal de que eu esqueci de enxaguar o sabão de coco que esfreguei na parte do sovaco; numa camiseta branca havia manchas brancas (limpa!!) e arquipélagos marrons e pretos (sujo!). Las cositas más lindas de Díos!!!

Durante o jantar arranjei uma defensora. A Yení (doidinha) encasquetou que era uma ótima idéia ir num ritual de Santería, que ela tinha curiosidade, que queria conhecer e... como ela manda no Enrique, começou a fazer a cabeça dele. Enrique ligou para Maria e anotou o endereço da festa.

Explico a razão do Enrique ter ligado: o espanhol falado em Cuba é, de looonge, o mais complicado e difícil de entender. Domino razoavelmente bem o idioma e só tenho um pouco de dificuldade com o sotaque chileno. Mas o cubano é literalmente impossível de entender. Eles falam correndo, pra dentro e engolem um monte de consoantes! Tive muita dificuldade na primeira semana. Da Wendy (irmã do Kike), por exemplo, não consigo entender nada! Da Yení também é difícil porque ela fala baixo. O mais fácil é o do Roly porque ele é meio surdo e não fala. Grita!! Kkkkkk. Enfim, pedi pro Enrique ligar pra Maria, porque entender onde fica um endereço, sem leitura labial, era demais pra mim.

Después de cenarmos fomos à casa da Mari (era dia de La Favorita!!). Doddy encontrou Donatela no esconderijo e o bicho pegou! Voltando ao tema da “fiesta santa”, Mari falou brincando que iriam me jogar uma praga lá pra eu ficar em Cuba.

Tião respondeu que a praga era fazer um filho em Cuba, mas que isso ia se virar contra a feiticeira (Mari), pois ele iria se mandar de volta pro Brasil e largar o filho pra ela (Mari) cuidar. Todo mundo caiu na gargalhada.

Levei meu Ipod pois o Enrique queria baixar umas músicas pro computador da Wendy. Só que o Itunes não era compatível. Cometi uma gafe. Falei pra Wendy ir num hotel e baixar a nova versão na internet. Ela me olhou e disse que 1 hora de internet custa o salário dela de todo um mês...
Engoli seco aquela mancada.

Voltamos e fui dormir. Nessa noite, por descuido, tirei a fronha do travesseiro e acabei descobrindo que o que eu estava usando pra dormir era a coisa mais encardida que eu já tinha visto na vida. Era literalmente um marrom-preto. Aquilo, seguramente, tinha mais de 30 anos. Uma colônia... um país inteiro de ácaros! Não sou fresco mas aquilo travou meu nariz na hora, subiu uma sinusite que eu nunca tive na vida....bleeerrgghhh.
Não dava mais pra dormir com aquilo... peguei o meu saco de dormir e fiz um travesseiro improvisado.

No es fácil...

Acordei no sabadão, tomei café-da-manhã e fui assistir um pouco de televisão cubana. A programação passa com diferença de minutos.

8:17 hs – Jornal da Manhã
9:03 hs – Programa Infantil
9:57 hs – Documentário do Michael Moore
20:37hs – La Favorita

Obviamente, em Cuba não há propaganda comercial! Então é tudo dividido por minuto.

A programação resume-se a programas infantis pela manhã, documentários socialistas-comunistas à tarde, novela e discurso do Fidel à noite.

Enrique me chamou pra dar uma volta no bairro, em busca de um disjuntor pro chuveiro. Caminhamos até encontrar uma pequena barraca de rolo, onde um sujeito vendia de tudo. Disjuntores, parafusos, fechadura de porta, caneta, farinha e tudo mais que você imaginar. De onde ele arrancou aquilo só Deus sabe...
Ni qui o Enrique tava avaliando o disjuntor escutamos uma voz feminina atrás de nós:

“Ingeniero!!!!”

Ni qui nos viramos pra ver quem era... raaaaapazzzz........................

Rááááápaizzz....................

Uma loira m-a-r-a-v-i-l-h-o-s-a, colega de faculdade do Enrique, vestida num shortinho “me-fode-papito”... uma coisa de fazer o octagenário Fidel Castro reviver a tensão da crise dos mísseis!!!!!

Eles deviam ser muito amigos mesmo na época de faculdade, e não deviam se ver há tempos, tamanho o entusiamos do re-encontro.

Tião também ficou tooodo entusiasmado!! Todo meninão...!

“Olha, esse é um amigo meu do Brasil, Tião.”

“Ah, muito prazer”, esboçou a moçoila só-sorrisos.

“Prazer não, querida. Satisfação! S-A-T-I-S-F-A-Ç-Ã-O! Prazer é outra coisa e costuma aparecer mais tarde!!!!”

A moçoila não entendeu a piada barata em portunhol do Tião. Melhor assim.

Enfim, a deusa-loira-caribenha nos chamou para tomar uns mojitos à noite e colocar o assunto em dia com o Enrique.

Só que, para desespero do Tião, e alegria de Johnny na Babilônia, o Enrique negou, dizendo que já tinha assumido um compromisso pra aquela noite.

huhuhuhu, Tião! Ele vai conosco na Santería”

“Ah, não... vá sifú....! Olha essa loira cabulosa!!! Ela quer sair conosco hoje à noite, você tá me entendendo? Ela quer. Quer sair, tomar mojitos, bailar salsa! É o verdadeiro ‘trem-querendo’ e você nessa mania antropológica de ir na macumba num SÁBADO à noite...!!!”

Tarde demais para Tião, Enrique já havia decidido que ia conosco à noite. Minha amizade com Tião ficou estremecida.

Voltamos pra casa, almoçamos e tiramos  um cochilo à tarde. A noite prometia.

Decididos que Enrique e Yení iriam comigo, estavámos quase saindo de casa quando aparece um maluco de mochila na porta. Era o Eric, um norueguês que o Enrique estava esperando só para a próxima semana mas, não sei por que cargas d’água e comunicação errada, apareceu lá.

Bom, o maluco deixou as mochilas no quarto que iria dividir comigo e o Enrique disse que estávamos de saída para uma “festa” (hehehe), e perguntou se ele queria nos acompanhar. O viking aceitou de pronto, nem imaginando que tipo de “festa” estávamos indo.

Hehehehehe

A festa não seria num terreiro, mas sim na casa da afilhada da Maria. Em Cuba não se realizam rituais de Santería em terreiros (creio que pela impossibilidade de ter propriedade privada e casas extras). O lugar ficava no Bairro Buena Vista (sim, do Buena Vista Social Club) e realmente tive muita sorte do Enrique ir comigo, porque não tinha a mínima idéia de chegar lá. O próprio Enrique se perdeu várias vezes.

Chegamos e fomos muito bem recebidos pela Maria e sua afilhada. O restante dos familiares, e principalmente os Ogãs Alabês (tocadores de tambor), ficaram nos olhando ressabiados... Acho que nenhum branco, quanto menos gringo, tinha pisado lá antes.

Kkkkkkkkkkkkkkkkkk

O toque (ritual) logo começou. A estética não se compara ao Candomblé brasileiro (as roupas, vestimentas, decoração são bem mais simples), mas achei a energia muito forte, vibrante. Um entusiasmo muito forte nos cantos, toques de tambor e no acompanhamento dos filhos da casa. Era bastante contagiante e o transe de uma filha de Iemanjá (Yemayá na Santería) foi impressionante.

Já era madrugada e eu gostaria de ter ficado até o dia amanhecer, mas o pessoal estava um pouco cansado e o Eric extremamente assustado!

Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Saímos de lá e nos perdemos várias vezes naquele misto de bairro-favela antes de encontrarmos uma avenida e tomarmos um ônibus até Santa Fé.

Enfim, achei o ritual bonito mas demasiadamente sincretrizado com o catolicismo...

As religiões africanas tiveram que sincretizar-se para poder escapar da perseguição dos colonizadores, das forças policiais e da Igreja Católica também. Alguns cultos se sincretizaram tanto a ponto de perder sua identidade, enquanto outros (em geral, mais afastados dos grandes centros), conservaram grande parte de sua originalidade.

A casa da afilhada da Maria, por exemplo, estava coberta de quadros de Jesus Cristo e imagens de Nossa Senhora e outros santos... Descobri, posteriormente, que em Cuba também se cultua o que chamamos no Brasil de Candomblé Bantu (dos escravos originários de Angola e Congo), que lá adquiriu o nome de Palo Mayombe ou Las Reglas de Congo. Trata-se de um outro tronco linguístico, étnico e cultural africano (língua Kimbundo). Segundo apurei, é um culto bem mais restrito (menos pessoas o praticam), menos sincretizado e, portanto, os transes são bem mais fortes.

Infelizmente não pude tirar fotos, fazer vídeos (é bem compreensível, pois eles tinham acabado de me conhecer...). Fiz algumas pesquisas no Youtube, mas a maioria só fala besteira ou foi feito por algum gringo europeu que não entende nada... Vou postar um vídeo sobre Santería mais-ou-menos e outro sobre o Palo Mayombe, além de para vocês terem mais ou menos uma idéia de como foi.


Santeria



Palo Mayombe






* Pessoal, peço encarecidamente moderação nos comentários neste capítulo específico. Em que pese o tom humorístico desse blog, este assunto é sério. As religiões e crenças individuais devem ser respeitadas e toleradas. Fazer comentários desrespeitosos só demonstra a ignorância e o fundamentalismo que a maioria das pessoas têm sobre os assuntos que não lhe são familiares. Grato!

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