quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Cap. 9 – A Fuga

Não tenho a mínima idéia como Tião, Eric e eu chegamos em casa depois de 2 barris de mojito com Clara e Mônica. Eric deve ter decorado bem o caminho pois como ainda tava de resguardo não pode beber nem fumar (deve ser a razão pela qual faz tanta besteira amorosa... hehehe).

Logo cedo, antes do Enrique sair, comentei a minha situação com ele. Ficou um pouco preocupado e disse que ia contactar um amigo, cuja mãe trabalha na Imigração, pra pedir uma orientação. E me deu a dica de sair de Havana por alguns dias. Eu que já tava pensando em dar uma viajada pelo interior, além do Tião que não aguentava mais programas culturais e conversas sociológicas, decidimos iniciar nossa fuga naquele mesmo momento.

Abri meu Lonely Planet, mas Tião logo tomou das minhas mãos.

Você já se divertiu bastante, já conversou com Deus e o mundo aqui, já sabe como vivem, como comem, o que pensam, já foi na sua macumba em pleno sábado à noite e já fez muita merda também. Agora quem dá os rumos da viagem sou eu. Leia-se: praia, cachaça e mulher. Eu escolho o destino”.

Bizoiou o mapa e achou do outro lado da ilha uma cidade chamada Baracoa, que estava descrita com a seguinte frase: “Isolated and intriguing, Baracoa is Cuba’s Shangri-Lá”

Sensacional, Tião. Sombra, água fresca, praia e sossego. É tudo que estamos precisando. Vumbora!

Baracoa fica no extremo leste da ilha a mais de 1.000 km de Havana. De lá, em dias de céu aberto, é possível ver o Haiti, a apenas 60 km dali. Eric decidiu se juntar a nós, sob os olhares ressabiados de Tião, e partimos de manhã mesmo rumo a rodoviária.




Obviamente não havia ônibus direto. Decidimos ir parando, cidade por cidade até chegar lá. Como a polícia já tava no nosso encalço, Eric sugeriu uma cidade chamada Cienfuegos, a uns 180 km de Havana, que sua irmã havia visitado anos antes.

O ônibus era relativamente confortável e depois de quatro horas de pinga-pinga chegamos nessa cidade, que fica na beira do mar, mas na costa sul da ilha. A idéia original era procurarmos uma casa particular, mas Eric veio a viagem inteira falando de uma senhora cubana que havia hospedado a irmã dela, que ficaram muito amigas, que ele precisava entregar uma carta a ela e que provavelmente poderíamos ficar lá.

Bem, seria uma boa idéia, mas a mulher sequer estava nos esperando... Ponderei isso com o Eric mas ele achou que deveríamos, ao menos, tentar. Antes ele queria por que queria passar num supermercado pra fazer algumas compras pra mulher, caso a gente ficasse hospedado lá. Falei que a gente poderia fazer depois, mas o cabeça dura insistia pra irmos antes.

Vamos os dois infelizes com as mochilas nas costas procurar algum supermercado. Obviamente não achamos. Tampouco o endereço da mulher, que era muito esquisito (“Edificio 16, Apartamento 6”). Obviamente ninguém sabia onde ficava. Até que Eric achou outro papel que constava uma direção mais completa (“Reparto Pastorita, Edificio 16, Apartamento 6”).

Ahhhnnn”, exclamou uma velhinha para qual pedimos informação. “Reparto Pastorita. Está lejos de aqui. Hay que tomar un taxi!”.

Tomamos a piorra do táxi e eu já imaginando... Longe, Edifício 16...essa porra é uma COHAB....

DITO E FEITO. Era um conjunto habitacional popular do lado de fora da cidade. Até o taxista achar o tal Edifício 16 foi uma novela. Uma hora ele ficou puto, desceu do carro e começou a discursar:

Mas que país é este em que vivemos???!! Ninguém sabe onde fica um endereço! Não há letreiros nos prédios!!! Que situação! Aonde vamos parar????”

Foi cômico, hilário e trágico ao mesmo tempo!!!! Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Achamos a disgraça do prédio (eu já tava num humor daqueles... já tinha feito merda em Havana e agora continua insistindo no erro, prestes a continuar me hospedando em casa de cubanos...), subimos as escadas e o Eric bateu na porta do apartamento número 6. Uma senhora assustada com a presença de dois mochileiros abriu. Eric entregou a carta a ela. A mulher pôs o óculos, leu e abriu um sorriso:

“Entrem! Entrem! Você é irmão da Huaytasha????”

A história da família do Eric também é cabulosa: a mãe casou duas vezes, tem uns 3 filhos. O pai também casou umas três vezes e têm mais uns 5 filhos. Uma das ex-mulheres dele é iraniana, que já tinha essa filha iraniana (Huaytasha), que é então irmã de consideração do Eric, que tem mais uma penca de irmãos e irmãs. Caráleo....

Só sei que a tal da iraniana maluca deve ter sido muito boa pra mulher, porque ela ficou super feliz com nossa presença e fez questão que ficássemos lá.

Ok... here we go.

A mulher em questão se chama Lina. É engenheira aposentada, nascida em Havana mas mora em Cienfuegos há alguns anos. Tem um casal de filhos. O mais velho mora com o pai em Havana e a mais nova é engenheira de computação e professora da Universidade de Cienfuegos (Lissete). O apartamento é pequeno mas bem arrumadinho. Nos apossamos do quarto da Lina, que foi dormir no outro quarto com a filha.

Ela ficou extremamente contente em conhecer o Eric, pois tem muita estima pela irmã dele. A história é meio maluca, como deve ser a irmã do dito cujo. Parece que ela tava perdida na rodoviária de Havana e como não falava espanhol, todo mundo tava querendo passar a perna na garota. Daí a Lina viu aquilo e saiu em socorro da iraniana. Não entendi direito mas não havia ônibus aquele dia, e como as duas estavam indo indo pra Cienfuegos, acabaram dividindo um táxi com mais duas pessoas. Como chegaram lá já de madrugada, a Lina insistiu pra que a Huaytasha dormisse na casa dela naquela noite. A irmã do Eric acabou ficando lá um tempão e ficaram super amigas.

A Lina teve um problema de saúde recentemente e a irmã do Eric mandou medicamentos pra ela via correio, por isso a gratidão que a Lina tem por ela. Enfim, fui tomar um banho e não havia água no banheiro. Parece que há um tempo atrás teve um problema hidráulico e nunca consertaram. Então, escovar dente e tomar banho só de canequinha.

Logo depois chegou a Lissete com uma amiga (Janette, também professora da Universidade), que iria dormir lá naquela noite. Coitada, teve que dormir no sofá por nossa causa...

Enfim, a Lina veio no quarto e falou baixinho pra mim que a filha tinha chegado mas que não estava muito bem porque tinha recebido a notícia de que a viagem em missão que ela faria à Angola havia sido cancelada. E tascou a meter o pau no sistema cubano!

O Eric já havia me contado que a irmã tinha alertado ele que discussões políticas na casa eram proibidas, pois a mãe (Lina) era uma feroz crítica ao sistema, enquanto que a Lissete uma árdua defensora do sistema, militante do Partido Comunista Cubano, etc. e tal. Fiquei pensando se ela não iria me dedurar pras autoridades. Mas, enfim, ela estava nos recebendo na casa dela, o que, por si só, já era um ilícito...

Continuou a Lina dizendo que a filha estava esperando aquela oportunidade há anos, pois se passasse 2 anos trabalhando em Angola, receberia algo em torno de 10.000 dólares (pelos dois anos) e descontado alguns impostos e mais os 70% que ficam com o Estado (como éééé???), sobrariam uns 2.500 dólares, o que dava pra reformar o banheiro fácilmente...

Perguntei se a retenção de 70% era praxe e ela disse que sim. Todo cubano que vai trabalhar fora em alguma missão do governo tem 70% do salário retido!

Enfim, Lissete veio com os olhos marejados e nos cumprimentou simpaticamente. Depois escutei ela brigando com a mãe, dizendo que não queria mais tocar naquele assunto (viagem cancelada) e concordando com as razões do governo em cancelar a viagem.

Bueno, depois tive que administrar um outro problema com o Eric. Ele queria porque queria ir num supermercado fazer compras. Só que já era noite, não havíamos encontrado durante o dia e o lugar que estávamos era longe do centro da cidade. Além disso, a Lina foi bem enfática ao dizer que não aceitava dinheiro dele, comida, nada (ele ficava oferecendo tudo... sem noção!). Falei pra ele que iríamos no dia seguinte. A Lina disse que iria no dia seguinte pela manhã numa feira comprar vegetais para poder fazer um almoço ou jantar para nós. Eric começou a insistir para ir com ela, que vetou logo de cara.

O pior era o seguinte: o Eric não entendia nada do espanhol dela (ele até fala espanhol bem), então ela falava que não era pra ele ir, e o tiongo respondia

“ah, ok, então amanhã vamos juntos fazer compras!”

Tião perdeu a paciência (que já quase não existia) e chamou ele de canto, falando de forma bem franca e direta de que não ia rolar de fazer compras com ela, que no dia seguinte nós compraríamos outra coisa e pra ele parar de encher o saco com aquela história.

Enfim, pra não dar mais trabalho pra Lina, resolvemos sair pra dar uma volta e jantar fora. Convidamos as meninas mas elas tinham uma aula-prova no dia seguinte cedo. Quando estávamos quase saindo, elas perguntaram se era possível esperá-las se aprontarem, pois tinham mudado de idéia e iam conosco. Foda-se a aula-prova!

Tião já ficou animadão!

“u lá lá, Johnny! Agora começou a MINHA viagem! Olha o trem-querendo! Vumbooora, garoto!”

Saímos para dar uma volta pela cidade, que é bem bonita por sinal. Tem uma arquitetura francesa, com as ruas e quarteirões bem divididos e um boulevard que dá na praça central, onde está localizada a Prefeitura, a Catedral, um Teatro e outros prédios antigos.

Ah, esqueci de falar. Eric não sossegou enquanto não achou um telefone público que fizesse chamadas internacionais para a chicana. Por mais que os telefones estivessem totalmente fora do caminho, tínhamos que passar por lá.

Tião à beira de um ataque de nervos. Era muita falta de noção pra um dia só...

Enfim, pedimos às meninas que escolhessem um restaurante pois o jantar era por nossa conta. Como era segunda e a cidade não é grande, estava difícil achar algum aberto. Encontramos um de frutos do mar, mas cobrava em CUC e elas não queriam aceitar. Insistimos. Não era tão caro. Comemos caneloni de frutos do mar e saiu mais ou menos 40 CUC a conta inteira. Vimos que elas estavam um pouco sem graça.

Saímos de lá, compramos uma garrafa de rum e fomos caminhar pelo malecón. Sentamos na beirada do cais e ficamos um bom tempo conversando. Com o desenrolar da conversa, elas nos contaram que a conta deu mais ou menos 3 vezes o salário delas!

No es facil...
Conversamos sobre a vida em Cuba, o sistema de educação, as viagens que elas já fizeram (Janette – Canadá; Lissete – França e Argentina), sempre em missão do governo.

Comentei sobre um livro que eu li antes da viagem (A Vantagem Acadêmica de Cuba – Martin Carnoy), indicado por um professor meu do mestrado. Trata-se de uma análise, sem o viés ideológico, das razões pelas quais a educação de Cuba é melhor que a dos outros países americanos.

O livro é bastante rico e vale a pena lê-lo por inteiro. Resumidamente as razões pelas quais os alunos cubanos e a educação daquele país estão bem à frente das outras são: valorização da profissão do professor; currículo estruturado e rígido nacionalmente; foco na formação de um ser humano completo e não mera mão-de-obra trabalhadora; ensino de menos conteúdos mas de forma bastante aprofundada; formação de alunos “pensantes” e não meros decoradores de fórmulas e conteúdos a serem cobrados no vestibular; formação social, ética e moral; existência um grande capital social; desnecessidade de trabalhar após o horário das aulas, dentre outros fatores.

Depois passaram duas gringas polacas com dois jineteiros. Um deles parecia o Michael Jackson nos tempos do Jackson Five e o outro era a re-encarnação do Bob Marley. A meninas estava muito loucas e os jineteiros mais ainda por alguns euros.

No dia seguinte fomos, Eric e eu, dar uma volta geral na cidade. Caminhamos por toda a cidade (com várias pausas para o Eric ligar pra Frida Kahlo), vendo os pontos históricos, turísticos, etc. Encontrei uma internet num teleponto mas nada de e-mail do Enrique sobre a minha situação...

Voltamos à noite carregados de compras (pão, queijo, leite, manteiga, óleo, etc.). Lina ficou um pouco brava pois insistia que nós não devíamos ter comprado nada...

Ela e Lissete prepararam um belo jantar criollo (comida típica cubana) com arroz mouro, carne de porco, legumes e suco de maracujá. Estava uma delícia. Lina contou várias histórias de Cuba, especialmente do “período especial”.

O “período especial” foi o nome carinhoso que o governo cubano usou para denominar a década de 90... Com o fim da URSS e o colapso do ideal comunista, Cuba se viu de uma hora pra outra sem o apoio da URSS que lhe subsidiava e provia grande parte dos produtos necessários à sua sobrevivência como país, desde petróleo até alimentos. O país entrou numa grave crise econômica, energética, alimentar. Faltava tudo. Combustível, alimentos, remédios.

Se vocês quiserem ter uma boa idéia do que foi este período, sugiro a leitura do livro “Trilogia Suja de Havana – Pedro Juan Gutierrez”. Aliás, este livro, assim como vários outros, é censurado em Cuba. Um dia entrei numa livraria e não achei nada do Vargas Llosa. Perguntei ao Enrique e ele me disse que é porque Cuba não paga direitos autorais (mas havia Garcia Marquez e até Philip Roth). Enfim, nada me tira da cabeça que é devido à censura também.

Voltando ao período especial, várias pessoas (Roly, Lina, etc.) me relataram que, de fato, foi um período extremamente difícil. Só havia luz elétrica 12 horas por dias. No verão era impossível dormir sem um ventilador. As pessoas passaram muita necessidade.

Lissete disse que naquela época era comum ver no malecón de Havana pessoas se atirando ao mar em balsas improvisadas e até mesmo em pranchas, tamanho o desespero. Ela disse se lembrar muito bem de uma “balsa” construída com uma carcaça de um carro, onde uma família inteira entrou e se jogou ao mar. Outro fato narrado por Lina foi o de um vizinho (ali de Cienfuegos mesmo) que se lançou ao mar numa balsa improvisada e, desde então, há 16 anos, a família não tem notícias dele. Não sabem se morreu, afogou-se, foi comido por tubarões, chegou aos EUA, foi preso ou tá rico...

Lina continuou contando histórias até que literamente dormiu na cadeira de balanço.

Kkkkkk

Eric também foi se deitar. Eu e Lissete ficamos conversando até altas horas da madrugada. Ela me mostrou várias fotos antigas, inclusive uma do irmão dela na época do período especial. Uma comparação bizarra! O cara estava branquela, raquítico e com olheiras escuras.

Realmente, no es fácil...



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