quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O mundo é bão Sebastião!

* Aviso aos navegantes: este relato mescla histórias reais com fictícias, contém relatos de ilícitos cometidos, conhecimento do ser humano feminino (no sentido bíblico da palavra), uso de substâncias proibidas (obviamente, estes três tópicos compõem as partes fictícias – rsrsrs), está escrito em linguagem coloquial e abusa do emprego de gírias e palavras de baixo calão. Portanto, se você nao se sentir preparado, nem tampouco tiver uma mente previamente aberta por substâncias alucinógenas, não prossiga!

 “Viver é muito perigoso: sempre acaba em morte.” (Grande Sertão: Veredas)


Fotos em: picasaweb.google.com/jpsabino

Cap. 1 – Comida é água?


A escolha do meu próximo destino sempre se baseia no tripé: exotismo/contexto histórico/disponibilidade de tempo e grana.

Cuba foi a escolhida da vez por ser um destino diferente e exótico, por estar atravessando um momento histórico especial (mudanças sociais, políticas e econômicas) e por se tratar de um país pequeno, podendo ser bem conhecido em três semanas de viagem.

Por um misto de falta de tempo e até certo desinteresse não me programei tanto como nos outros mochilões. Isto é, comprei um Lonely Planet de Cuba, uma passagem aérea e fosse o que Deus quisesse. Nos outros mochilões estudei com afinco os destinos, as cidades, o que fazer, onde ir, onde comer, onde ficar. Nesta viagem eu queria apenas ir para um lugar onde eu não era marido, pai, amante, amigo, sócio, freguês, vizinho de ninguém. E nem sociólogo, antropólogo, cientista político, advogado, orgiasta, correntista, contribuinte, prestamista, reservista, eleitor, condômino, assinante, réu, reclamante, cidadão ou qualquer outra porra de merda de bosta.

Enfim, queria deixar as coisas acontecerem mais naturamente, então me limitei a ler alguns livros (romances e técnicos) sobre Cuba e contactar um amigo cubano pelo CouchSurfing.

O CouchSurfing (assim com o Hospitality Club) é uma comunidade internacional de mochileiros (uma espécie de Orkut, Facebook) para troca de informações, dicas e principalmente hospedagem gratuita. O lema do site é mais ou menos o seguinte: “tenha sempre um sofá disponível na sua casa, para que você tenha um sofá disponível para dormir em qualquer lugar do mundo”.

Faço parte desta comunidade há 6 anos, tendo dormido em vários sofás mundo afora, bem como recebido vários gringos na minha casa. Em Cuba encontrei pouquíssimos “couchsurfers” cadastrados. O motivo é que a internet no país é bem limitada e pouco acessível, além do que hospedar estrangeiros em casa é terminantemente proibido...

Enviei “surf requests” aos 7-8 couchsurfers cubanos disponíveis mas apenas um (Enrique) me respondeu. Dei uma olhada no perfil dele e só continha boas indicações/avaliações e relatos positivos de mochileiros que se hospedaram na casa dele. Iniciamos um papo via e-mail e de pronto fui aceito para “surfar o sofá do cara”.

A priori, minha viagem estava marcada para julho de 2010, mas o surgimento de um trabalho bacana me obrigou a adiá-la para janeiro de 2011. Nesse meio tempo mantivemos contato, trocando idéia sobre o país, onde ir, o que fazer, etc.

Quando um mochileiro se hospeda na casa de um couchsurfer, não paga nada pela hospedagem (obviamente), mas reza a cartilha de boas maneiras sempre comprar algo para preparar o almoço/jantar, levar algum presente, etc. A intenção é realmente trocar experiências, conversar, fazer amizades, conhecer como vivem os locais, o que comem, o que pensam, onde trabalham, etc. Gosto deste tipo de viagens e abomino aqueles pacotes turísticos fechados onde te jogam num hotel, te passam uma programação fixa e ponto final.

Perguntei ao Enrique o que ele queria/precisava e a lista foi: um pouco de leite em pó, manteiga e chocolate. Wow! Realmente um pedido atípico, pois teoricamente isso se consegue em qualquer lugar. Não em Cuba...
Acabei montando uma cesta básica que ocupou mais da metade da minha mochila e que continha: latas de leite em pó, latas de manteiga, várias barras de chocolate, chicletes, café e capuccino, leite condensado, doce de leite, canetas, lápis, etc...etc...

Um dia antes do embarque, com a mochila já pronta, surgiu a dúvida: posso levar comida pra outro país?!?!?!?!

Liguei para uma amiga viajada, que disse:

Você tá maluco? Se te pegam entrando com comida na Inglaterra, te põem 7 anos na cadeia!
Uia....

Falei com outra amiga, que está morando na Argentina, e a resposta foi mais animadora:

Coloque tudo na mala que vai no bagageiro, acondicione bem e não terá problema. Já trouxe até carne-seca pra cá...!

Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Bom, realmente as restrições devem ser de país a país e não devem abranger todo tipo de alimento. Além disso, nos livros de relatos de viajantes que li, sempre levavam comida pra Cuba. Latas e vidros não devem ser proibidos...

Até porque me lembrei que pouco tempo atrás cheguei em casa 11 e meia da noite e minha irmã, chef de cozinha, estava preparando uma mega-refeição para um batalhão. Perguntei o que era aquilo e ela me disse que ia fazer um almoço em Brasília no dia seguinte e que estava pré-parando as coisas. Perguntei como ela ia levar aquilo? A resposta foi: oxe, de avião meu filho!

Vejam o resultado da epopéia gastronômica de minha querida irmã:


Enfim, se ela embarcou com uma panela de pressão com uma galinha caipira dentro, um saco de farinha baiana e isopor com pamonhas de sobremesa, por que eu não entraria em Cuba com singelas latas de leite condensado e café solúvel?


Cap. 2 – No es fácil...

Gosto e prefiro viajar sozinho. Quando não se tem uma boa companhia é a melhor coisa a se fazer. Ainda assim, os atritos sempre surgem e é preciso ter uma amizade bem sólida para compreender os gostos e vontade do companheiro, abrir mão de algumas coisas ou partir para uma viagem “solitária” dali por diante, sem que a amizade fique abalada.

Como eu não tenho uma gota de paciência com o ser humano em geral (hahaha), prefiro evitar os conflitos e partir sozinho.

Sempre me perguntam se eu não tenho medo, se não me sinto só, se não é perigoso, se não é ruim, etc.

Afirmo com segurança: quando se viaja sozinho, sempre se está aberto a fazer novas amizades, conhecer mais as pessoas, as oportunidades de “surfar um sofá” aumentam, conhecer alguém bacana para fazer um day-trip ou viajar por dois-três dias juntos a um destino específico, rachando as despesas com acomodação, transporte, etc. Além disso, é impressionante a quantidade de pessoas que fazem isso mundo afora (jovens, adultos e até idosos). Os albergues e pousadas estão cheio de viajantes independentes, o que é uma ótima oportunidade para conhecer novas pessoas, arranjar um casual sex, digo, fazer amigas mundo afora.

Enfim, você só está realmente sozinho se, e quando, quiser!

Quebrando relativamente esta minha regra, embarquei com meu amigo Tião, um T-Rex malandro e mais viajado do mundo, que vocês terão oportunidade conhecer melhor logo mais...

Na fila do controle de imigração de Cumbica, já me apareceu a primeira maluca: uma brasileira vindo de Angola e indo pra não sei aonde, tentando embarcar com 30.000 euros em espécie. Deve ter roubado um banco em Angola e tava (pretendia...hehehe) ir pras Ilhas Caymann depositar a grana.

O avião da Taca fazia escala em Lima, no Peru. Não há voos direto do Brasil para Havana. As melhores opções de escala são: Lima (Taca) ou Cidade do Panamá (Copa Airlines). No trajeto até Lima, passamos por cima de Santa Cruz de la Sierra (que reconheci pelo formato de teia de aranha da cidade), Lago Titicaca (saudades da Ilha do Sol...), Cordilheira dos Andes, até pousar em Lima 4:30hs depois.

Lima creio ter sido a única cidade “turística” que não conheci quando estive mochilando no Peru em 2007. Do alto do avião me pareceu uma coisa horrível: uma cidade coberta de areia do deserto, um mar horroroso, uma grande nuvem de pó e poluição cobrindo o céu, dando o aspecto de uma cidade no deserto mexicano, fronteira com os EUA, dominada por gangsters. Adoro lugares bizarros assim. Um dia voltarei com tempo para lá.

Trocamos de avião e quando o outro voo, com destino a Havana, já estava correndo na pista, quase decolando, o piloto freou bruscamente e “arremeteu” a decolagem!!! Informou que tinha um “pequeno” problema técnico e por razões de segurança voltaríamos ao pátio. Estacionou, veio um caminhão-tanque, encheu o avião de querosene e decolamos!

Literalmente surreal... Dou minha cara a tapa se não tinham esquecido de abastecer o avião antes do voo!

 Esta és Taca! “LA MEJOR AEROLÍNEA DE CENTROAMÉRICA Y EL CARIBE SEGÚN SKYTRAX 2009” como diz o site da companhia e o comandante da aeronave a cada 5 minutos. Depois desse incidente, ele não abriu mais o bico. Meus ouvidos e minha inteligência agradecem...

Obviamente, cheguei em Havana com atraso, mas o pai do Enrique (ele se chama “Rolando”, mas todos o conhece pelo apelido de “Roly”) e a namorada dele (do Enrique), Yení, estavam me esperando, conforme havíamos combinado.

Cruzei o aeroporto com decoração kitsch, passei correndo pela Imigração e pelo controle de Aduana/Fitosanitário, entreguei minha ficha de entrada, a qual, no item “está trazendo algum alimento pra Cuba?", meti um “No” vacilante, tomei a mochila nas costas e encontrei meus anfitriões.

Entramos num Lada verde ano 1816, que o Roly “alugou” de um vizinho e fomos pra casa. Na saída, o Roly me disse que se a polícia nos parasse, que eu dissesse que era amigo deles (e não que estava pagando por eles terem ido me buscar – combinei previamente com o Enrique em pagar 25 CUC, para ter a segurança que não seria enrolado por taxistas). Sem problemas com a polícia, tomamos a estrada e... 10 minutos depois.... cof...cof...cof... o carro parou. Bem no meio de uma curva.

Abre o capô, analisa daqui, analisa dali (de fato, muito pouco a analisar, tendo em vista a IMENSA COMPLEXIDADE E TECNOLOGIA DE UM MOTOR SOVIÉTICO!), enfia uma vareta no tanque de combustível e... pimba! 0,5 cm molhado... Acabou a gasolina!!!! Juro por Dios!!!

O Roly ficou possesso. Disse que pôs gasolina antes de ir e que a única explicação era que o sujeito que estava guardando o carro no estacionamento do aeroporto a tivesse roubado!

Yení virou-se para mim e num misto de inconformismo com resignação disse: “No es facil...”

Essa seria a primeira das muitas vezes que eu escutaria essa expressão em Cuba.




Cap. 3 – Johnny defumado à moda cubana, embebido com vinagre...

Eu não estava nem um pouco nervoso ou chateado (papo sério). Na verdade, estava achando aquilo muito louco! A viagem já estava começando bem: cheia de imprevistos e fortes emoções. Do jeito que eu gosto!

Além, já possuo uma boa experiência em taxis Lada. Quando cheguei no Egito, em 2005, tomei um Lada-Taxi que perdeu uma roda (!) no meio da estrada às 2 da manhã. Literalmente, estávamos guiando pela estrada que liga o aeroporto à cidade, quando o carro tombou pro meu lado. Olhei pra trás e vi uma labareda de faíscas. Olhei pra frente e vi a roda cruzando a avenida!

Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Enfim, chegamos bem atrasados em casa (já era noite). Eu estava defumado, pois o escapamento do carro parecia que estava colocado do lado de dentro do carro, bem no banco de trás. Com o tempo vi que essa é uma constante em Cuba. O cheiro característico (principalmente de Havana) é de óleo queimado. Imagine aqueles carrões anos 40, 50, com seus motores V8, desregulados, andando pra cima e pra baixo na cidade, fazendo meio quilômetro por litro. Com o tempo passei a exalar um cheiro de óleo 2 tempos que me persegue até hoje.

A casa do Enrique é ampla mas bem simples. Na verdade, está caindo aos pedaços. São 3 quartos, um banheiro e um quintal grande. Ele já estava nos esperando e não demonstrava nenhuma preocupação pela demora. Acho que já está acostumado com os imprevistos cubanos. Feitas as apresentações, tive uma ótima primeira impressão de todos eles.

Tinha um quarto só pra mim, com uma cama com o colchão afundado no meio. Parecia que um porco de 150kg dormiu ali nos últimos 45 anos. Ok, não me importo. Já dormi num “quarto” com 70 pessoas na Dinamarca. Sim, 70 pessoas. Um cheiro de humanidade que me entoja até hoje. Quando como algo coisa ruim e quero vomitar, mentalizo aquele lugar. Em 2 segundos já pus tudo pra fora.

Enrique tem 32 anos, é engenheiro elétrico, trabalha numa empresa do governo (99% das empregos em Cuba são estatais, ou semi-estatais. Explicarei mais adiante.), tem a parte da frente da cabeça raspada na máquina 4 e na de trás um dreadlock animal (coisa que eu não havia visto nas fotos do Couchsurfing)!!!!
Enquanto o pessoal terminava o jantar, disse a ele que tinha trago alguns presentes e comecei a desempacotar da mochila. Sorrateiramente ele entrou no meu quarto e disse baixinho:

“João, aquele chocolate que eu havia lhe pedido pra Yení, não dê a ela. Na verdade é pra uma ‘amiga’ minha...”

“Ok, Enrique, eu trouxe outras coisas pra ela que você havia pedido, como solução pra lente de contatos e chicletes.”

Tião (meu amigo canalha) já se animou na hora:

“Que DESCARADO este teu amigo, Johnny da Babilônia! Hahaha! Cheio dos rolos. Gostei desse cara.
 Sinto que vamos nos dar bem!!! Hahahaha”

“É Tião... como diria meu pai, “um gambá cheira o outro”. Juízo nessa nova amizade que começa...”


Tião e Enrique: a tampa e o balaio...

Entreguei a eles: uma lata de leite em pó, uma lata de manteiga Aviação (que foi o que eles mais gostaram), café, nescau, etc. Como a ilha é pequena, não há espaço para pasto. Logo, todo produto de gado bovino é muito raro e caro. Leite, manteiga e derivados lácteos são artigos de luxo.

Pra Yení, trouxe uns tubos de solução para lente de contato, outros tantos de umidificadores de lentes, estojos, além de um vidro de doce de leite Havana (que apesar do nome, é argentino, e mais paradoxalmente, delicioso) etc.

Pro Enrique, trouxe um tocador MP3 com músicas brasileiras e um celular.

Tudo isso eu arranquei dele com muito custo, trocando e-mails, perguntando o que eles tavam precisando, pois era fácil conseguir aqui.

Pro Roly, eu trouxe vários refis de aparelho de barba, espuma pra barbear, loção pós barba. Trouxe também um relógio bem bonito Tommy Hilfiger, digo “Tonny Hilfiger” que comprei no xingling ao lado do meu escritório.

A história do relógio é a seguinte: eu iria em julho de 2010, estava tudo certo e tive que adiar na última hora. Na época era aniversário do Roly e eu perguntei ao Enrique o que ele gostaria de ganhar. Enrique me respondeu que há anos o pai estava procurando um relógio novo, mas que preferia ganhar um aparelho de barbear, pois era o que mais necessitava no momento. Mandei por um amigo meu que foi à Cuba na época, um pacote com um aparelho Mach 3, espuma, locao, etc.

Agora levei o presente atrasado e mais alguns agrados. Roly ficou extremamente feliz e não parava de me agradecer. De fato, apesar de chinês, o relógio era bem bonito. Rs

O jantar ficou pronto: arroz, feijão e picadinho. Ocorre que o Enrique, na confusão de fazer o jantar e conversar comigo, se atrapalhou no sal e temperou umas 3 vezes. Estava MUITO salgado. Ninguém comeu muito, mas eu (pra dar uma de educado e fazer graça...) comi tudo sem reclamar...

Depois fomos na casa da mãe do Enrique (Mari), que mora com a outra filha (Wendy) a poucos metros dali. Todas muito simpáticas. Enquanto eu entregava uns presentes pra elas: leite em pó, chocolates, capuccino, café, geléia de amora, Enrique mexia num programa de computador bizarro que servia para desbloquear celulares estrangeiros.

Na televisão cubana passava a novela brasileira “A Favorita” (“La Favorita” em espanhol). Todos são aficcionados por novelas brasileiras em Cuba, incluíndo Mari e Wendy. Ocorre que eu não sabia nada, ou muito pouco da história de Flora e Donatela, mas estava me divertindo com a tradução para o espanhol.

Neste capítulo, Donatela (presumidamente morta) aparece para Flora. As três (Mari, Wendy e Yení) me perguntam se a atriz que fazia a Donatela (Claudia Raia) era um transexual (eu sei lá que porra de boato tava correndo em Cuba, mas outras 257 pessoas, quando descobriam que eu era brasileiro, me fizeram essa mesma pergunta durante a viagem!!!)

Tião, sacana, logo respondeu:

“É! É sim... era homem. Fez uma operação nos EUA há alguns anos e virou mulher. Mas antes da operação foi casada com outro ator famoso, só que ela (Donatela, ou Claudia Raia), tinha um bingolim maior que o do cara. Ele não aguentou a brincadeira diária do troca-troca, porque sempre saía prejudicado, e se separou dele, digo dela...”

Todas ficaram estarrecidas...

Tião adorou o efeito provocado pela resposta e a repetiu nas outras 257 que foi indagado pelos cubanos sobre o órgão sexual de Donatela, digo Cláudia Raia.

Voltamos e Roly me perguntou o que eu achava da nova presidente do Brasil. Ele queria entender como uma mulher que nenhum cubano nunca tinha ouvido falar tinha virado presidente do Brasil. Começamos a conversar sobre o governo Lula e dei uma resumida sobre como os homens de confiança (e possível presidenciáveis) do Lula foram caindo um a um. Quando contei a história do Zé Dirceu, que tinha se exilado em Cuba, ele disse que não lembrava dele, pois naquela época estava morando na União Soviética! Bem louco!!! O Roly é um militar aposentado e morou vários anos na antiga URSS!

Depois fomos dormir. No meio da madrugada os 10 kgs de sal da comida fizeram efeito e acordei com MUITA sede. Aí fiz a primeira MERDA da viagem...: fui à cozinha na ponta dos pés, abri a geladeira, peguei a primeira garrafa de água que vi e, sem dó nem piedade, virei goela abaixo. Ni qui o segundo gole tava descendo a garganta, senti um gosto horrível e a queimação.... era vinagre!!!!!!!!!!! Puuuuuuuuuuuuurrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

CARALHO!!!!!!!! Bebi duas goladas de camelo de vinagre puro! Puta que la pariu!!!!!!!!! A porra do vinagre tava numa garrafa d´água igual às outras, só que na porta, ao invés de deitada nas prateleiras. Em 2 segundos já senti a queimação do estômago e minha gastrite dando as boas vindas cubanas. Nem os dois litros de água que tomei depois, nem as 17 pastilhas Gelmax que chupei foram suficientes. Praticamente nao dormi mais.

No es facil...

Cap. 4 – Duas moedas, duas medidas

A combinação de gastrite e jet lag (são três horas a menos em Cuba) me fizeram acordar de vez às 5 da manhã. Fiquei contando carneirinhos até o pessoal levantar. O café da manhã foi leite com chocolate, pão (gostoso) e presunto frito. O Enrique deu um gato no trabalho pra poder resolver um problema pessoal e me acompanhar no primeiro dia de Cuba.

No caminho ele foi me explicando um pouco sobre a vida lá. Praticamente todo mundo trabalha pro Estado. Ele, por exemplo, é engenheiro elétrico e trabalha numa espécie de empresa pública para projetos de eletricidade e meio ambiente. O salário: 15 dólares por mês...

Enfim, todo mundo em Cuba faz rolo pra poder sobreviver. O Enrique, por exemplo, tem uma espécie de agência de viagens virtual (Cuba Enjoy). As pessoas o contactam e ele ajuda na reserva de hotéis, casas particulares (espécie de pousadas cubanas), aluguel de carros, cobrando uma comissão por isso. Nesse dia, ele tinha que encontrar uma argentina para a qual ele tinha montado um pacote. Disse no trabalho que tinha consulta médica e tirou o dia de folga.

Nesse dia, aprendi na prática, o sistema de duas moedas nacionais existentes em Cuba. Lá existem o peso cubano, com o qual são feitas a maioria das transações cubanas, pagos os salários, etc. Mas tem também o peso conversível (CUC), criado quando o país se abriu para o turismo (década de 90) e usado para transações com turistas. Sim, há uma discriminação entre cubanos e turistas, pois 1 CUC equivale a 25 pesos cubanos (ou moneda nacional)! Tudo que é relativo ao turismo (diárias em hotéis e casas particulares, táxis, ônibus intermunicipais, a maioria dos restaurantes, souvernires, etc.) são cobrados em CUC! E para efeitos de comparação, 1 Euro equivale a 1,18 CUC. Já 1 CUC equivale a 0,88 dólar. Além, o dólar tem uma sobretaxa de 20% da conversão cambial. Coisas da peleja Cuba vs. EUA.

Essa discriminação entre CUC e Moneda Nacional (Peso Cubano) acabou por gerar uma indústria paralela do turismo, pois tudo que é considerado superfluo na economia cubana é cobrado em CUC. Exemplos: carne bovina (que não consta na libreta) é cobrado em CUC, existem supermecados que só vendem em CUC, neles pode se comprar artigos importados, desde sabonetes e pasta dentais, até tênis e aparelhos eletrônicos. Falarei mais sobre isto e sobre a libreta no decorrer da viagem.

Encontramos a argentina no Hotel Habana Libre. Trata-se do antigo Hilton Palace na época de “ouro”. Com a Revolução, o hotel foi nacionalizado e lá instalado o primeiro gabinete presidencial do Fidel Castro, donde ele governou nos primeiros meses da Revolução. Por isso a escolha do novo nome.

Este Hotel fica no bairro chamado Vedado, que é uma espécie de centro comercial/empresarial de Havana. Prédios altos, hotéis, avenidas largas. Não tem muito a ver com a Cuba de verdade.

Depois comemos uma pizza na rua e fomos caminhando até a Plaza de la Revolución. No caminho passamos por um out-door com uma pintura de um avião da Cubana (empresa aérea estatal) caindo no mar e uma frase “Exigimos Justicia – 34° Aniversário”. Perguntei ao Enrique e ele me contou a história: em 1976 um avião da Cubana, trazendo de volta a equipe cubana campeã olímpica de esgrima, explodiu e caiu no mar do caribe matando todos os 176 passageiros. Ficou comprovado que foi um ataque terrorista planejado por um tal “Posada Carriles” que, coincidentemente, encontra-se preso nos EUA e está sendo julgado por lá neste momento. Este assunto é o hit do momento em Cuba. Na televisão e nos jormais só dava isso. O cara é acusado de diversos ataques terroristas em Cuba e na Venezuela, mas os EUA negam-se a extraditá-lo e o estão julgado somente por entrada ilegal naquele país.

A Plaza de la Revolución é o quartel-general do governo cubano. Rodeando o Monumento a José Martí (o grande herói nacional) estão os ministérios, a sede do Comitê Central del Partido Comunista Cubano, etc. Na praça também são realizados as grandes paradas cívicas e comemorações nacionais. É lá que o Fidel Castro pronuncia seus discurssos intermináveis. Também foi lá que o Papa João Paulo II rezou uma missa em 1998 para mais de um milhão de pessoas. Subindo ao topo do Monumento a José Martí têm-se uma ampla e bonita visão de toda Havana.

Voltamos à tarde para casa do Enrique. Em verdade, ele não mora em Havana, mas sim num município ao lado (colado, como numa região metropolitana) chamado Playa. É nesse município que estão localizados as embaixadas e as casas dos ricões cubanos e estrangeiros (em geral, pessoas que trabalham no setor de turismo ou possuem alguma empresa de importação/exportação). Ali perto, também, mora o Fidel Castro e o Raúl Castro, numa espécie de condomínio de segurança máxima. Playa é como se fosse uma Alphaville de São Paulo, sacou?

Mas como toda Alphaville tem uma Carapicuíba no caminho, é mais ou menos ali que o Enrique mora (kkkk), num bairro de Playa chamado Santa Fé... Apesar dos pesares, a casa dele fica a 200 metros da praia e nesse dia tomei meu primeiro banho de mar no Caribe. Enrique não quis entrar. Disse que a água estava muito fria. Pra mim tava normal, temperatura de água de praia no Brasil. Ele disse que no verão (lá é inverno nessa época) a água fica bem quente.

Depois passamos na casa de uma vizinha pra comprar um frango (esqueci de perguntar se ela cria ou desvia do frigorífico do Estado, pois lá todo mundo desvia alguma coisa do governo...) pro jantar. Quando chegamos em casa, Yení já tinha devorado o vidro inteiro de Doce de Leite Havana!!!!

Roly preparou o frango ensopado e ficou uma diliça!!! Após o jantar fomos na casa da mãe do Enrique assistir La Favorita. Ela estava cortando o cabelo de um cara (é “peluqueira”, como se diz em espanhol). Perguntei ao Enrique como funciona isso (trabalhar por conta própria) e ele me explicou que, na verdade, não é por conta própria. Ela trabalha mas tem que entregar todo o dinheiro ao Estado (que controla a produção pela quantidade de produtos que ela utilizou, já que o Estado também fornece todo o material de trabalho – shampoo, cremes, tesoura, máquina, etc.), em troca de um salário fixo por mês. Típico de um Estado Socialista. Incentivo zero à produtividade. Se a mãe do Enrique cortasse 100 cabelos num mês ou nenhum, ganharia o mesmo salário. Sobre isso ainda conversaria muito com o Enrique no decorrer da viagem...



Cap. 5 – Odoiá, Iemanjá, Salve a Rainha do Mar!

Acordei meio quebrado. Primeiro porque o colchão é afundado no meio, dando da sensação de que dormi numa rede. Depois porque antes de dormir deixei um papel cair no chão e quando me abaixei pra pegá-lo percebi que a cama estava apoiada sobre dois pés literalmente comidos pelo tempo. Na prática, apenas os outros dois pés da cama (inteiros) a seguravam. Como eu me mexo demais durante o sono, toda hora acordava com a sensação de que tinha quebrado a cama! Kkkkkkk

Aproveitei e acordei bem cedo (6:20hs) pra acompanhar o Kike (como todo mundo chama o Enrique na família) até Havana. Isso porque no dia anterior eu não tinha prestado atenção direito e não decorei os ônibus que eu tenho que pegar e em quais paradas tomá-los e em quais descer.

São dois ônibus (que lá eles chamam de “guagua” – pronúncia /guáguá/ com o “g” praticamente mudo): de um ponto perto da casa do Enrique devia tomar o 420 ou 191 até a entrada de Playa, que ficava numa grande rotatória. De lá, eu devia pegar o P1 ou o P4 até Havana. O trajeto demora uns 40 minutos e os ônibus são extremamente lotados!!!

Saímos de casa às 7 horas, entramos num ônibus igualzinho às “zebrinhas” de Brasília, que estava parado no ponto. Perguntei a razão do Enrique não ter pago as passagens e ele me disse que aquele era o ônibus da empresa!

Tião já ficou puto:

“Caráleo! Porra Johnny, você me acorda as 6 da matina pra entrarmos num busão que vai direto pra empresa do cara. Não vamos aprender nada hoje!”

De fato, não adiantou nada... e, pra completar, o ônibus apagou no meio do caminho!!!!

Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Todo mundo teve que descer pra empurrar! Uma cena hilária!


Zebrinha no prego...


Ressucitada a zebrinha Tião pôs-se a perguntar ao Enrique como ele fazia pra alugar um carro velho ou uma motoca pra viajar pelo interior. Nossa idéia era pegar um Cadilac rabo-de-peixe anos 40-50 ou uma motoca com banco lateral (está cheia delas em Cuba) e dar uma viajada.

Enrique nos broxou dizendo ser praticamente impossível. É que os carros a serem alugados são apenas os novos. Os antigos disponíveis já vêm com o motorista (deve ser porque quebram toda hora, então o mecânico vai a tira-colo). A motoca não se aluga...

Como “no” em Cuba quer sempre dizer “talvez” ou, “quanto você pode pagar”, insisti na idéia de alugar uma motoca de um particular. Ele nos broxou mais uma vez dizendo não haver autorização do Estado para isso. Se a polícia nos pegasse numa blitze, o dono da motoca ou do carro velho iria ter sérios problemas.

“Mira, Tião, lo que no es permitido, es proibido, compreendes?”

“No sé, Enrique... Creo que depende del abogado que tu tengas...”

Enrique se acabou de rir...

Chegamos na empresa dele, que fica no final da avenida 23, a duas quadras do malecón (orla de Havana). Nesse dia caminhei muito. Muito. Fácilmente entre 15 a 20 kilômetros. Percorri todo o malecón de Vedado, depois percorri toda a avenida 23 até o malecón novamente. Voltando ao ponto inicial, virei pro sentido contrário e caminhei pelo malecón até Centro Habana, percorri todo o Paseo del Prado, passei pelo Capitólio, tirei umas fotos, rumei pro Bairro Chino (Chinatown), passei pela fábrica de charutos Cohiba (os tours estavam suspensos, devido às férias gerais), almocei num restaurante chinês ótimo (um pratão de camarão por 10 CUC) e, na volta, dei de cara com o Museu Yorubá.

Opa opa opa! Pausa para um imenso parêntese.

Um dos motivos do meu plano original de ir à Cuba em julho de 2010 era poder acompanhar meu amigo e professor de antropologia na USP, Vagner, num congresso de Santería Cubana. Minha idéia era aproveitar a oportunidade para, além do turismo, visitar alguns terreiros e cerimônias religiosas. Tive que adiar a viagem mas fiquei com a idéia fixa de arranjar um jeito de conhecer este lado cultural-religioso sozinho.

A Santería é uma religião cubana, trazida junto com os escravos africanos, que nada mais é que o nosso Candomblé brasileiro. Yorubá, ou “Iorubá” é o termo usado para descrever, ao mesmo tempo: a cultura, a língua e o povo da parte oeste da África (atual Nigéria, Benin, Togo e Serra Leoa). Este povo constitui a maioria dos escravos trazidos para a Bahia (Brasil) e pra Cuba (daí a semelhança entre o Candomblé Ketu/Nagô – praticado na Bahia, e a Santería – praticada em Cuba).

Como no Candomblé brasileiro, o ritual da Santería é altamente secreto e transmitido principalmente por via oral. As práticas conhecidas incluem sacrifício animal, dança extática e invocações cantadas aos espíritos. A música do tambor, atabaque e dança são usadas para produzir um estado do transe nos participantes, que podem incorporar um orixá.

Pois ali estava eu, em frente ao Museu Yorubá de Cuba. Obviamente que eu iria entrar! Tião ficou puto e resolveu me aguardar do lado de fora enquanto tomava um sorvete. Comprei o ingresso e entrei no museu. Passei primeiro pela biblioteca, onde comecei a conversar com a bibliotecária. Falei que era brasileiro e estava interessado em conhecer a Santería para analisar as semelhanças e diferenças com o Candomblé brasileiro. A mulher era uma anta, só falava besteira. Não entendia nada. Nem o básico da estrutura das religiões africanas. E o pior, numa empáfia da porra. Crente que era a autoridade no assunto.

Deixei ela falando sozinha e subi pro primeiro andar, onde havia um grande salão com imensas estátuas dos orixás. Lá conheci Maria, a guia do museu. Comecei a conversar com ela e logo criamos uma ótima empatia. Maria, além de conhecer muito do assunto, se mostrou extremamente interessada no Candomblé brasileiro e as similitudes e diferenças com a Santería. Ficamos mais de uma hora andando pelo museu, conversando, analisando as imagens, os avatares do orixás, etc.

Ao final, disse à Maria que eu tinha muita vontade de ir numa cerimônia e perguntei onde eu poderia conhecer alguém que fosse filho(a)-de-santo e que pudesse me convidar pra um ritual de Santería. Maria disse que ela própria era filha-de-santo e que no sábado haveria um ritual na casa de uma afilhada dela, e que eu estava convidado!

Pááááaááá parapapeôôô!!!!!

Me deu o telefone dela e pediu pra eu ligar no dia seguinte à noite pra ela me passar o endereço certinho.
Sai de lá eufórico, encontrei o Tião na esquina e já lancei a idéia:

“Tião, Tião! Você não acredita, meu velho!!! Descolei um ritual de Santería pra gente ir no sábado!!!”

“Como é que é, mermão??? Você só pódi tá di sacanagi!!! Até aqui em Cuba você vem com essa mania de ir pra macumba? Esquece! Sem chance!”

“Porra, Tião! Vumbora, velho! Vai ser massa!!!”

“Nem fudeno!!! Você e suas manias de antropólogo-sociólogo! Sai dessa mermão, sábado é dia de zoar, ir numa festa, bailar com as tchicas, beber mojito, joder!!!!! Era só o que me faltava ir pra macumba num sábado à noite!!!!!!!!!!!!!!!”

Não ia ser fácil convencer o Tião. Fecha o parêntese.

De lá rumamos para o Museu de la Revolución. Um palacete onde funcionava a sede do governo de Fulgêncio Batista (ditador que o Fidel derrubou com a Revolução). Hoje funciona um museu bem bacana. Muitas fotos, armas, trajes, maquetes, desenhos das estratégias militares da guerrilha revolucionária, etc. No pátio do museu encontra-se o Granma (famoso barco no qual Fidel, Che, Raul, Camilo et caterva) embarcaram em 1959 desde o México até Cuba para dar início à Revolução. O barco está dentro de uma imensa redoma de vidro e concreto. Segundo o Lonely Planet, para impedir que os cubanos o roubem para fugir pra Flórida.

Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Saindo de lá peguei um táxi-bike até a empresa do Enrique pois combinei de voltar com ele, no busão da firma! Nele não há lotação e dá pra ir sentado. Quando não quebra... hehehe

Cheguei uns 45 minutos antes do fim do expediente e fiquei sentado na calçada esperando o  tempo passar e apreciando a vida cotidiana cubana. Isso é uma das coisas que eu mais gosto de fazer nas viagens. Sentar num canto e ver a vida passar. A vida cubana se parece como qualquer outra: pessoas saindo do trabalho, crianças voltando da escola, casais de namorados brigando, etc. Mas também tem suas peculiaridades, como o gringo bichona com um jineteiro cubano passeando de mãos dadas.

Explico: com a abertura do país ao turismo, surge uma classe trabalhadora do sexo. Homens e mulheres que se prostituem em busca de dinheiro fácil, dólares, euros e até mesmo o tão sonhado passaporte pra ir embora da ilha, casado com um gringo(a), obviamente. São os chamados jineteiros(as). Fiquei observando um gringo afetado, magrelo, passeando com um cubano bombado, de camiseta regata justinha e sem qualquer tipo de afetação. O macho da história. Cômico e trágico ao mesmo tempo.

Enrique chegou, tomamos a guagua, e fui contando a ele sobre meu dia. Deixei a história do museu e da Santería por último. Comecei o assunto pelas beiradas, ele foi me olhando ressabiado e no final soltei o convite.

O bicho deu um pulo, me olhou com os olhos arregalados!

Já emendei:

“Entonces, vamonos????”

Enrique ficou de pensar...

Tião começou a jogar contra.

Chegamos em casa e o Roly estava acabando de preparar o jantar: arroz, feijão e picadinho de carne (de soja!). Pra quem tinha caminhado 20km, aquilo tava um manjar. Com o rum então...

Logo depois o Roly teve de sair pra o encontro semanal dos combatentes de Gyron! Perguntei o que era aquilo e o mesmo me explicou: ele participou da batalha de Gyron, que nada mais é que a Invasão da Baía dos Porcos! Resumidamente: em 1961, mercenários cubanos, treinados pela CIA e armados pelo governo norte-americano invadiram Cuba na tentativa de derrubar o governo de Fidel Castro. A tentativa foi um desastre por vários fatores: o lugar era pantanoso e inapropriado para o desembarque das tropas; Fidel descobriu o plano e se preparou antecipadamente; na última hora JFK cancelou o apoio militar e logístico do exército americano (segundo várias fontes, a CIA jamais o perdoou por isso, o que custou a vida do presidente...), etc. Enfim, Roly lutou lá quando tinha 21 anos e segundo ele, era o mais velho, pois a sua companhia estava repleta de jovens entre 14 e 16 anos! Mais surpreendente ainda é que descobrir que o Roly já tem mais de 70 anos! O coroa tá enxuto!!

Fiquei me perguntando o que eles tanto discutem, semanalmente, um fato que aconteceu há 50 anos atrás... Enfim, fomos à casa da mãe do Enrique. Mas naquele dia não tinha  La Favorita. Ela só passa às segundas, quartas e sextas, salvo engano. Lá na casa, Enrique contou o fato d’eu ter sido convidado pra um ritual de santería. Um imenso debate começou!

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Primeiro queriam saber como isso tinha acontecido, como eu que havia recém chegado conheci alguém da Santería e já logo havia sido convidado prum ritual, se eu tinha aceitado o convite, se eu iria, se eu não tinha medo, etc. e tal. Parece minha avó quando descobre que eu vou no Candomblé e passa uma semana na Igreja rezando por minha alma perdida...

Orixás, dai-me paciência.

No es fácil...

Cap. 6 – La Fiesta Santa

Acordei no dia seguinte depois de uma bela noite de 10 horas de sono. Aproveitei a disposição e fui lavar minha roupa no tanque. Vida de mochileiro não é fácil, não! Lava meia, torce cueca, espreme camiseta. Tomei café-da-manhã e parti para pegar a guagua sozinho pela primeira vez. A disgraça tava mais lotada que a Linha Vermelha quando chega na Praça da Sé às 18:30hs de uma sexta-feira véspera de feriado prolongado. Entrei na lata de sardinha tocando um reggaeton mais brega possível. Na primeira parada fui jogado pra fora, junto aos que desciam, e por pouco não fiquei de fora mesmo...

Caminhei por toda Habana Vieja, que era o último da Havana turística que eu não conhecia. Almocei num restaurante bom chamado “La Mulata”. Comi frango e arroz mouro (um arroz com feijão preto). Nesse dia comprei logo cedo a edição do Granma, aproveitei e li durante o almoço.

O Granma é o jornal oficial do governo cubano (é praticamente o único jornal de Cuba. Existe também o “Juventud Rebelde”, que é praticamente uma cópia, com mais ênfase em esportes, etc. Todos são editados pelo governo e quase todos os dias contém um editorial imenso do Fidel Castro.

O editorial do dia tinha o título “Qué diría Einstein?”, onde Fidel aproveitava a notícia de prisão de um espião israelense no Irã pra detornar os EUA, Israel, defender Julian Assange, etc. e tal. Todos os editoriais do Fidel terminam com a assinatura dele, a data e hora de conclusão. Aquele tinha sido finalizado em “Enero, 6. 8:16 PM”.

Tião aproveitou o almoço e tomou váários mojitos. Tropeçando saiu em busca de um lugar com internet pra mandar um “salve” pro papai e pra mamãe.

Internet em Cuba é coisa raríssima. Só existem em alguns poucos hotéis, é caríssima (em geral 7-8 dólares a hora), mais lenta que a conexão discada da década de 90, e sempre com fila. Ótimo. Era disso mesmo que eu estava precisando. Paz de espírito. Não levei meu celular e não tinha internet. Desliguei totalmente da vida mundana brasileira.

Fui caminhando até Vedado (uns bons 5 km) para encontrar o Enrique e voltar no busão da firma dele, certo mano? Ele desceu uns 3 pontos antes da casa, pois iria encontrar “un tipo” que destrava celular. Cuba e seus rolos.

Aproveitei e passei no supermecado. Comprei suco, macarrão e salsicha pra ajudar na janta. Cheguei em casa e o Roly já foi logo perguntando:

“Usted ha sido invitado a una fiesta santa???”

“Si...”

“Y vas???????”

Ô mô pai.... lascou-se...agora é o pai com o interrogatório!!

Enquanto o jantar não ficava pronto fui recolher minha roupa. De fato, a soma de minhas habilidades de dono-de-casa, somada à precariedade do tanque, produziram um festival de limpeza impressionante. Vejamos: numa camiseta preta havia uma imensa mancha branca embaixo dos braços. Sinal de que eu esqueci de enxaguar o sabão de coco que esfreguei na parte do sovaco; numa camiseta branca havia manchas brancas (limpa!!) e arquipélagos marrons e pretos (sujo!). Las cositas más lindas de Díos!!!

Durante o jantar arranjei uma defensora. A Yení (doidinha) encasquetou que era uma ótima idéia ir num ritual de Santería, que ela tinha curiosidade, que queria conhecer e... como ela manda no Enrique, começou a fazer a cabeça dele. Enrique ligou para Maria e anotou o endereço da festa.

Explico a razão do Enrique ter ligado: o espanhol falado em Cuba é, de looonge, o mais complicado e difícil de entender. Domino razoavelmente bem o idioma e só tenho um pouco de dificuldade com o sotaque chileno. Mas o cubano é literalmente impossível de entender. Eles falam correndo, pra dentro e engolem um monte de consoantes! Tive muita dificuldade na primeira semana. Da Wendy (irmã do Kike), por exemplo, não consigo entender nada! Da Yení também é difícil porque ela fala baixo. O mais fácil é o do Roly porque ele é meio surdo e não fala. Grita!! Kkkkkk. Enfim, pedi pro Enrique ligar pra Maria, porque entender onde fica um endereço, sem leitura labial, era demais pra mim.

Después de cenarmos fomos à casa da Mari (era dia de La Favorita!!). Doddy encontrou Donatela no esconderijo e o bicho pegou! Voltando ao tema da “fiesta santa”, Mari falou brincando que iriam me jogar uma praga lá pra eu ficar em Cuba.

Tião respondeu que a praga era fazer um filho em Cuba, mas que isso ia se virar contra a feiticeira (Mari), pois ele iria se mandar de volta pro Brasil e largar o filho pra ela (Mari) cuidar. Todo mundo caiu na gargalhada.

Levei meu Ipod pois o Enrique queria baixar umas músicas pro computador da Wendy. Só que o Itunes não era compatível. Cometi uma gafe. Falei pra Wendy ir num hotel e baixar a nova versão na internet. Ela me olhou e disse que 1 hora de internet custa o salário dela de todo um mês...
Engoli seco aquela mancada.

Voltamos e fui dormir. Nessa noite, por descuido, tirei a fronha do travesseiro e acabei descobrindo que o que eu estava usando pra dormir era a coisa mais encardida que eu já tinha visto na vida. Era literalmente um marrom-preto. Aquilo, seguramente, tinha mais de 30 anos. Uma colônia... um país inteiro de ácaros! Não sou fresco mas aquilo travou meu nariz na hora, subiu uma sinusite que eu nunca tive na vida....bleeerrgghhh.
Não dava mais pra dormir com aquilo... peguei o meu saco de dormir e fiz um travesseiro improvisado.

No es fácil...

Acordei no sabadão, tomei café-da-manhã e fui assistir um pouco de televisão cubana. A programação passa com diferença de minutos.

8:17 hs – Jornal da Manhã
9:03 hs – Programa Infantil
9:57 hs – Documentário do Michael Moore
20:37hs – La Favorita

Obviamente, em Cuba não há propaganda comercial! Então é tudo dividido por minuto.

A programação resume-se a programas infantis pela manhã, documentários socialistas-comunistas à tarde, novela e discurso do Fidel à noite.

Enrique me chamou pra dar uma volta no bairro, em busca de um disjuntor pro chuveiro. Caminhamos até encontrar uma pequena barraca de rolo, onde um sujeito vendia de tudo. Disjuntores, parafusos, fechadura de porta, caneta, farinha e tudo mais que você imaginar. De onde ele arrancou aquilo só Deus sabe...
Ni qui o Enrique tava avaliando o disjuntor escutamos uma voz feminina atrás de nós:

“Ingeniero!!!!”

Ni qui nos viramos pra ver quem era... raaaaapazzzz........................

Rááááápaizzz....................

Uma loira m-a-r-a-v-i-l-h-o-s-a, colega de faculdade do Enrique, vestida num shortinho “me-fode-papito”... uma coisa de fazer o octagenário Fidel Castro reviver a tensão da crise dos mísseis!!!!!

Eles deviam ser muito amigos mesmo na época de faculdade, e não deviam se ver há tempos, tamanho o entusiamos do re-encontro.

Tião também ficou tooodo entusiasmado!! Todo meninão...!

“Olha, esse é um amigo meu do Brasil, Tião.”

“Ah, muito prazer”, esboçou a moçoila só-sorrisos.

“Prazer não, querida. Satisfação! S-A-T-I-S-F-A-Ç-Ã-O! Prazer é outra coisa e costuma aparecer mais tarde!!!!”

A moçoila não entendeu a piada barata em portunhol do Tião. Melhor assim.

Enfim, a deusa-loira-caribenha nos chamou para tomar uns mojitos à noite e colocar o assunto em dia com o Enrique.

Só que, para desespero do Tião, e alegria de Johnny na Babilônia, o Enrique negou, dizendo que já tinha assumido um compromisso pra aquela noite.

huhuhuhu, Tião! Ele vai conosco na Santería”

“Ah, não... vá sifú....! Olha essa loira cabulosa!!! Ela quer sair conosco hoje à noite, você tá me entendendo? Ela quer. Quer sair, tomar mojitos, bailar salsa! É o verdadeiro ‘trem-querendo’ e você nessa mania antropológica de ir na macumba num SÁBADO à noite...!!!”

Tarde demais para Tião, Enrique já havia decidido que ia conosco à noite. Minha amizade com Tião ficou estremecida.

Voltamos pra casa, almoçamos e tiramos  um cochilo à tarde. A noite prometia.

Decididos que Enrique e Yení iriam comigo, estavámos quase saindo de casa quando aparece um maluco de mochila na porta. Era o Eric, um norueguês que o Enrique estava esperando só para a próxima semana mas, não sei por que cargas d’água e comunicação errada, apareceu lá.

Bom, o maluco deixou as mochilas no quarto que iria dividir comigo e o Enrique disse que estávamos de saída para uma “festa” (hehehe), e perguntou se ele queria nos acompanhar. O viking aceitou de pronto, nem imaginando que tipo de “festa” estávamos indo.

Hehehehehe

A festa não seria num terreiro, mas sim na casa da afilhada da Maria. Em Cuba não se realizam rituais de Santería em terreiros (creio que pela impossibilidade de ter propriedade privada e casas extras). O lugar ficava no Bairro Buena Vista (sim, do Buena Vista Social Club) e realmente tive muita sorte do Enrique ir comigo, porque não tinha a mínima idéia de chegar lá. O próprio Enrique se perdeu várias vezes.

Chegamos e fomos muito bem recebidos pela Maria e sua afilhada. O restante dos familiares, e principalmente os Ogãs Alabês (tocadores de tambor), ficaram nos olhando ressabiados... Acho que nenhum branco, quanto menos gringo, tinha pisado lá antes.

Kkkkkkkkkkkkkkkkkk

O toque (ritual) logo começou. A estética não se compara ao Candomblé brasileiro (as roupas, vestimentas, decoração são bem mais simples), mas achei a energia muito forte, vibrante. Um entusiasmo muito forte nos cantos, toques de tambor e no acompanhamento dos filhos da casa. Era bastante contagiante e o transe de uma filha de Iemanjá (Yemayá na Santería) foi impressionante.

Já era madrugada e eu gostaria de ter ficado até o dia amanhecer, mas o pessoal estava um pouco cansado e o Eric extremamente assustado!

Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Saímos de lá e nos perdemos várias vezes naquele misto de bairro-favela antes de encontrarmos uma avenida e tomarmos um ônibus até Santa Fé.

Enfim, achei o ritual bonito mas demasiadamente sincretrizado com o catolicismo...

As religiões africanas tiveram que sincretizar-se para poder escapar da perseguição dos colonizadores, das forças policiais e da Igreja Católica também. Alguns cultos se sincretizaram tanto a ponto de perder sua identidade, enquanto outros (em geral, mais afastados dos grandes centros), conservaram grande parte de sua originalidade.

A casa da afilhada da Maria, por exemplo, estava coberta de quadros de Jesus Cristo e imagens de Nossa Senhora e outros santos... Descobri, posteriormente, que em Cuba também se cultua o que chamamos no Brasil de Candomblé Bantu (dos escravos originários de Angola e Congo), que lá adquiriu o nome de Palo Mayombe ou Las Reglas de Congo. Trata-se de um outro tronco linguístico, étnico e cultural africano (língua Kimbundo). Segundo apurei, é um culto bem mais restrito (menos pessoas o praticam), menos sincretizado e, portanto, os transes são bem mais fortes.

Infelizmente não pude tirar fotos, fazer vídeos (é bem compreensível, pois eles tinham acabado de me conhecer...). Fiz algumas pesquisas no Youtube, mas a maioria só fala besteira ou foi feito por algum gringo europeu que não entende nada... Vou postar um vídeo sobre Santería mais-ou-menos e outro sobre o Palo Mayombe, além de para vocês terem mais ou menos uma idéia de como foi.


Santeria



Palo Mayombe






* Pessoal, peço encarecidamente moderação nos comentários neste capítulo específico. Em que pese o tom humorístico desse blog, este assunto é sério. As religiões e crenças individuais devem ser respeitadas e toleradas. Fazer comentários desrespeitosos só demonstra a ignorância e o fundamentalismo que a maioria das pessoas têm sobre os assuntos que não lhe são familiares. Grato!

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